segunda-feira, 18 de maio de 2020

#310 - DO POETA AO SEU POVO (Manuel Alegre)

Darei ao povo o meu poema.
Eu lhe darei a flor e a pedra
cada minuto cada tristeza
e uma azagaia contra a dura sorte
e a minha raiva acesa em cada noite. Eu lhe darei
a flor e a pedra. E a minha vida. E a minha morte.


E o direito do povo me julgar
e o direito do povo me dizer:
tu dormiste de mais. Cantaste pouco amigo.
Há muita coisa que não sabes
E eu lhe darei meu sono e eu lhe darei meu sonho.
E eu dou ao povo tudo quanto sei.


E nunca sei se tudo quanto dou é tudo.
Porque parei por vezes à beira dum poço
havia raparigas e cântaros e seios
e então bebi. Era Setembro e não pensei
que os homens não cantavam lá nas verdes vinhas
da minha pátria onde a vindima é triste.


Porque dormi de mais algumas vezes.
Outras ainda presumi e disse:
vou acordar o povo. Eu sou o poeta.
E não bati a cada porta e não deixei
em cada casa a taça da canção.
Porque não disse ao povo: sou apenas um homem.


Porque menti e dei aos outros
uma alegria feira à pressa       uma alegria triste.
Porque não disse os meus defeitos e nem sempre
eu disse ao povo duramente os meus defeitos
que também estão em mim. Porque me orgulho tanto
dos defeitos em mim do povo que não tem os meus.


Porque não disse ao povo: sou apenas um homem
talvez não preste é certo mas é tudo.
E nem sempre fiz tudo para ser mais do que sou.
Porque lhe disse: eis o poema eis o meu sangue.
E pensei que era tanto e pensei que era tudo
quando é tão pouco o sangue dum poeta.



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