sexta-feira, 28 de outubro de 2016

#239 - ÉCLOGA OU CANÇÃO ABANDONADA (Cristovam Pavia)

Na folha bailada
Levada
No vento,
Vai meu pensamento...

Na cinza delida
Espargida
Pelo rio,
Vai meu olhar frio...

E no teu sorriso
Da mais lisa
Quietação...
O meu coração...



quinta-feira, 27 de outubro de 2016

#238 "Anjo da infância," (Teixeira de Pascoais)

Anjo da infância,
Coroado de rosas purpurinas!
Aquele que nos vela o nascimento
E que nos embala o berço...
E, coroado,
De lírios roxos,
Há-de velar a nossa morte
E, à luz da lua, o nosso túmulo,
Pois morrer não é mais do que voltar
A antes de nascer...

 
sc. 1952
S. J. de Gatão



terça-feira, 25 de outubro de 2016

#237 - SONETO (Carlos Queirós)

De ti não quero mais do que a memória
Das breves horas idas que me deste,
Como a palma, depois duma vitória...
-- E nada mais dessa vitória reste.

De neblina um luar frio reveste
O meu passado: a infância foi-me inglória;
E dela não ficou mais do que a história
Dum menino, uma fada e um cipreste.

Não mais serei contigo neste vário
Campo, sonhando, em vaga liquescência...
Luz coada através dum aquário.

(Entanto, a serra tem a consciência
Do meu passar por ela solitário,
Como outrora, na minha adolescência).





sexta-feira, 21 de outubro de 2016

#236 - "Fruto de sol na minha boca." (João José Cochofel)

Fruto de sol na minha boca.
-- Terra tão vasta
e a vida tão pouca!

De Inverno e de Verão faça sol de Agosto.
-- Fruto na boca
deixou o seu gosto.

Assim deito meus olhos à flor do mundo.
Nem me peçam mais:
os lagos serenos têm menos fundo.



quinta-feira, 20 de outubro de 2016

#235 - AS DESENCANTADAS (Martins Fontes)

É belo ver brincarem as crianças!
É belo ver cantarem as raparigas!
Esparzindo alegrias e esperanças,
Desfolhando os amores em cantigas!

É belo ver, em tardes vitoriosas,
Os poetas, os heróis, os combatentes,
Sob as chuvas das pétalas de rosas,
Sob aplausos contínuos e frementes!

É belo ver as mães enamoradas!
É belo ver os sábios entretidos!
Por milhares de seres adoradas!
Por milhares de seres benqueridos!

Mas o que há de mais íntimo e profundo,
E mais consola o coração humano,
Sim, o que há de mais belo! é, neste mundo,
Ver um punhal no peito de um tirano!










quarta-feira, 19 de outubro de 2016

#234 - CHUVA OBLÍQUA (II) (Fernando Pessoa)

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no facto de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...



domingo, 16 de outubro de 2016

#233 - "Um dia mais, sou menos que era» (José Bento)

Um dia mais, sou menos que era
há momentos: rasurei o rosto
a barba que me embuça
sem imaginação nem sono.

Mas ela não se rende. Continua
a vegetar, raiz no sangue,
a mancha que parda punge
na máscara. E derrama-se.

Esta chaga não dói, ao supurar
contra o metal contrário:
é um mênstruo inesgotável,
servil, embora másculo.

Narcisismo ancestral, a matutina
perseguição aos pêlos,
enquanto o olhar comina o insulto
dos anos que fluem sob o espelho.

A pele não repulsa nunca a lâmina:
nem ao ser já pedra musguenta
e, ao despedi-la, outros receiem
que dela ainda esta erva cresça.



sexta-feira, 14 de outubro de 2016

#232 - "Feliz do que é levado a enterrar," (Reinaldo Ferreira [F.º]

Feliz do que é levado a enterrar,
Tão indiferente como quem nasceu!
Feliz do que não soube desejar,
Feliz, bem mais feliz do que sou eu!

Feliz do que não riu para não chorar,
Feliz do que não teve e não perdeu!
Feliz do que não sofre se ficar,
Feliz do que partiu e não sofreu!

Feliz do que acha bela e vasta a terra!
Feliz do que acredita a fome, a guerra
Terrores imaginários de crianças!

Feliz do que não ouve o mundo aos gritos,
Feliz! Felizes todos e benditos
Os que Deus fez iguais às pombas mansas...







quinta-feira, 13 de outubro de 2016

#231 - INSCRIÇÃO (Camilo Pessanha)

Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar seu ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...



quarta-feira, 12 de outubro de 2016

#230 - TOTI CADABRA (Arménio Vieira)

(Vida e morte severina)

        «Toti Cadabra», nome exacto para um
        ser marginal.
        Estes versos são o teu epitáfio;
        depois deles nunca mais falarão de ti.

No enterro de Toti
nem padre nem gente
na campa de Toti
nem flor de finado

Na campa-buraco
teu corpo mirrado
já eras da larva
bem antes da cova

Toti Cadabra
de vida macabra
já eras cadáver
bem antes da morte

Bem antes da morte
já eras cadáver
Toti Cadabra
de vida sinistra

O grogue e a fome
são traças são bichos
já eras da larva
bem antes da cova

No enterro de Toti
nem padre nem gente
na campa de Toti
nem flor de finado.



terça-feira, 11 de outubro de 2016

#229 - CANÇÃO DO ACASO (Alexandre d'Aragão)

Hoje que os passos fugiram,
Sonoros, da terra inteira,
Que os nossos passos na poeira
Das eras mortas expiram;

Que aguarda, em vão, penitentes
Algum deserto muslim:
-- Mesmo no meio das gentes
Ardem desertos sem fim... --

Ou a montanha salutar
O Enviado que for
Lá, da planície, incubar
Novo Verbo redentor.

Hoje que o homem, sem temores,
Há muito os deuses matou,
Só tu avivas as flores
Que o cepticismo gelou.

Vais comigo, e em tudo poisa
A tua asa, em redor:
Mudas de coisa p'ra coisa
Como as abelhas de flor.

A vida, sem o saber,
Abre-te as velas bem alto,
Aonde possas de salto,
Vento do acaso, bater.

Acaso -- o perigo vencendo,
Ou ao prazer sobrevindo --
De Ícaro as asas batendo,
Ou Dafne a Apolo fugindo...

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

#228- ALDEIA (Manuel da Fonseca)

Nove casas,
duas ruas,
ao meio das ruas
um largo,
ao meio do largo
um poço de água fria.

Tudo isto tão parado
e o céu tão baixo
que quando alguém grita para longe
um nome familiar
se assustam pombos bravos
e acordam ecos no descampado.





sexta-feira, 7 de outubro de 2016

#227 - NAVEGAÇÃO À VELA (Joaquim Namorado)

Segue:
tens nas bússolas todos os nortes
e nos sextantes
as alturas de todas as estrelas,
que foram feitas só para te guiar.

Segue,
nos teus mapas
estão marcadas todas as loxodromias
e nos portos
os cais mansos
estendem-te os braços maternais.

Vai
pelo caminho seguro
na certeza de aportar.
Vai
nos vapores das companhias
com baleeiras nos decks
e S.O.S. nas telegrafias
e cintos de salvação.

Vai
pelo boulevard iluminado,
pelos caminhos traçados
pelas velhas caravanas
do tempos dos Ramsés...

Mas deixa
que eu arrisque a minha vida
nas encruzilhadas escuras
dos bairros criminais,
e vá só
pelos desertos
com simouns e miragens
fora das rotas fatais;
deixa
que eu viva a aventura
sem bússolas e sem astros
-- como nos contos da velha pirataria
que a mim próprio eu contava
nos meus tempos de menino
e em que eu mesmo era o herói
e herói sempre invencível --
que eu amo só
as tempestades bravas
que partem os lemes e os mastros
e rasgam as velas
(asas agonizando nos topos
entre tufões)
e as ondas
grandes como montanhas
que nos arrastam das estrelas aos abismos;
e as marés irresistíveis
que me encalham nos baixios...
Que eu amo só
a vida arriscada
numa espelunca esquecida
duma rua de Xangai
num duelo de facada.

Vai
pelos caminhos seguros
nos vapores das companhias
com certeza de aportar...
deixa
que eu continue sendo
o último tripulante
da fragata naufragada
neste mar dos tubarões.



quinta-feira, 6 de outubro de 2016

#226 - ESPERANÇA (Vicente de Carvalho)

Só a leve esperança em toda a vida
disfarça a pena de viver, mais nada;
nem é mais a existência, resumida,
que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
sonho que a traz ansiosa e embevecida,
é uma hora feliz, sempre adiada
e que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
árvore milagrosa, que sonhamos
toda arreada de dourados pomos,

existe, sim; mas nós não na alcançamos
porque está sempre apenas onde a pomos
e nunca a pomos onde nós estamos.





terça-feira, 4 de outubro de 2016

#225 - A UMA TRANÇA DE CABELOS NEGROS (Jerónimo Baía)

Diversa em cor, igual em bizarria
Sois, bela trança, ao lustre de Sofala;
Luto por negra, por vistosa gala,
Nas cores, noite, na beleza, dia.

Negra, porém, de amor na monarquia
Reinais, senhora, não sereis vassala;
Sombra, mas toda a luz não vos iguala,
Tristeza, mas venceis toda a alegria.

Tudo sois, mas eu tenho resoluto
Que sois só na aparência enganadora,
Negra noite, tristeza, sombra, luto.

Porém, na essência, ó doce matadora,
Quem não dirá que sois, e não diz muito,
Dia, gala, alegria, luz, senhora?



segunda-feira, 3 de outubro de 2016

#224 - POEMA DE SETE FACES (Carlos Drummond de Andrade)

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, porque me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.