quarta-feira, 30 de novembro de 2016

#246 - A VARIEDADE DO MUNDO (António Barbosa Bacelar)

Este nasce, outro morre, acolá soa
Um ribeiro que corre, aqui suave,
Um rouxinol se queixa brando e grave,
Um leão c'o rugido o monte atroa.

Aqui corre uma fera, acolá voa
C'o grãozinho na boca ao ninho, ua ave,
Um derruba o edifício, outro ergue a trave,
Um caça, outro pesca, outro enferoa.

Um nas armas se alista, outro as pendura
Ao soberbo Ministro aquele adora,
Outro segue do Paço a sombra amada.

Este muda de amor, aquele atura.
Do bem, de que um se alegra, o outro chora...
Oh Mundo, oh sombra, oh zombaria, oh nada!


terça-feira, 29 de novembro de 2016

#245 - "não pude amar mais nada" (Fernando Assis Pacheco)

não pude amar mais nada
não pude amar mais ninguém
e mesmo que te minta
é o contrário disso

e mesmo que te minta
é a verdade seca
posta ali às avessas;
não pude amar mais claro



quinta-feira, 24 de novembro de 2016

#244 - COLEGIAL (José Régio)

Em cima da minha mesa,
Da minha mesa de estudo,
Mesa da minha tristeza
Em que, de noite e de dia,
Rasgo as folhas, leio tudo
Destes livros em que estudo,
E me estudo
(Eu já me estudo...)
E me estudo,
A mim,
Também,
Em cima da minha mesa,
Tenho o teu retrato, Mãe!

À cabeceira do leito,
Dentro dum lindo caixilho,
Tenho uma Nossa Senhora
Que venero a toda a hora...
Ai minha Nossa Senhora
Que se parece contigo,
E que tem, ao peito,
Um filho
(O que ainda é mais estranho)
Que se parece comigo,
Num retratinho,
Que tenho,
De menino pequenino...!

No fundo da minha mala,
Mesmo lá no fundo a um canto,
Não lhes vá tocar alguém,
(Quem as lesse, o que entendia?
Só riria
Do que nos comove a nós...)
Já tenho três maços, Mãe,
Das cartas que tu me escreves
Desde que saí de casa...
Três maços -- e nada leves! --
Atados com um retrós...

Se não fora eu ter-te assim,
A toda a hora,
Sempre à beirinha de mim,
(Sei agora
Que isto de a gente ser grande
Não é como se nos pinta...)
Mãe!, já teria morrido,
Ou já teria fugido,
Ou já teria bebido
Algum tinteiro de tinta!



quarta-feira, 23 de novembro de 2016

#243 - GAZETILHA (Fernando Pessoa, enquanto Álvaro de Campos)

Dos Lloyd Georges da Babilónia
Não reza a história nada.
Dos Briands da Assíria ou do Egito,
Dos Trotskys de qualquer colónia
Grega ou romana já passada,
O nome é morto, inda que escrito.

Só um parvo dum poeta, ou um louco
Que fazia filosofia,
Ou um geómetra maduro,
Sobrevive a esse tanto pouco
Que está lá para trás no escuro
E nem a história já historia.

Ó grandes homens do Momento!
Ó grandes glórias a ferver
De quem a obscuridade foge!
Tratem da fama e do comer,
Que amanhã é dos loucos de hoje!





sexta-feira, 18 de novembro de 2016

#242 - "Todo o Verão tem a sua sombra" (Fernando Jorge Fabião)


Todo o Verão tem a sua sombra
a sua pequena morte
homens lentos nas adegas
(poços de frescura)
imaginam ofícios sublimes
presságios
pequenas conjuras

Todo o Verão tem o seu assombro
paisagens altas
onde principio a escrever
(num silêncio de sinos)
vocábulos escassos, dissonâncias
numa saudade de rosas e luz estilhaçada.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

#241 - ANTERO DE QUENTAL, O ANJO CANSADO (Emanuel Jorge Botelho)

os dias iam indo sem sair da noite.
     todas as manhãs um cão entrava nos seus passos para lhe fazer companhia.
     colocou tudo dentro de uma rasura de soneto e fechou a porta.
     fechar a alma era coisa já antiga. como uma rosa que esqueceu o seu nome e já não sabe as palavras de cor.
     a vida poucas vezes lhe deu tempo de guardar no bolso o que era do silêncio, esse riso de hiena armadilhado que põe mel no rumor do medo.

     chegou ao Campo de São Francisco à hora que acordara.
     a morte já lá estava com as asas recolhidas.
     sentou-se, deu ao cão um longo afago, aconchegou-o junto às suas pernas, e deixou pousar nos lábios o sal de duas lágrimas.
     depois, devagarinho, tirou do bolso a mão direita e deu dois tiros na morte.

     no chão, desde aquele dia, ficou o recorte de uma sombra.
     quem a vê, dá-lhe o nome de sudário.
     e reza.

Ilha de S. Miguel, Açores


quarta-feira, 2 de novembro de 2016

#240 - NO TÚMULO DUMA CRIANÇA (Augusto Gil)

(De Diodoro)

Era perfeitamente um passarinho
Esbelto, saltarico e cantador...

               Acolhe-a com carinho,
               Recebe-a com amor,
E sê-lhe levezinha, ó terra mãe!
Pois que tão leve ela te foi também...