quarta-feira, 31 de agosto de 2016

#201 - SARITA (António Cardoso)

Sarita mora no musseque,
sofre no musseque,
mas passeia garrida na baixa
toda vermelha e azul,
toda sorriso branco de marfim,
e os brancos ficam a olhar,
perdidos no seu olhar.
Sarita usa brincos amarelos de lata
penteado de deusa egípcia
andar de gazela no mato,
desce à cidade
e sorri para toda a gente.
Depois, às seis e meia,
Sarita vai viver pró musseque
com os brancos perdidos no seu olhar!




terça-feira, 30 de agosto de 2016

#200 - POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL (Manuel Bandeira)

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro de Babilônia
                                                                               [num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

#199 - "Juntei-me um dia à flor da mocidade" (Fernando Assis Pacheco)

Juntei-me um dia à flor da mocidade
partindo para Angola no Niassa
a defender eu já não sei se a raça
se as roças de café da cristandade

a minha geração tinha a idade
das grandes ilusões sempre fatais
que não chegam aos anos principais
por defeito da própria ingenuidade

a guerra era uma coisa mais a Norte
de onde ela voltaria havendo sorte
à mesma e ancestral tranquilidade

azar de uns quantos se pagaram porte
esses a que atirou a dura morte
diz-se que estão na terra da verdade


Lisboa
28-IV-94

#198 - MODA (Leila Míccolis)

Eu queria te ver,
coxas de fora,
(como de fora vejo teus pelos do peito
pela camisa de seda),
a andares na rua,
entre assobios e apalpadelas,
o olhar disperso
como quem nada percebe,
e mostrando ao sentares,
subindo-te a roupa,
a cueca combinando com a gravata.


sábado, 27 de agosto de 2016

#197 - "Lá vem nhô Cacai da ourela do mar" (Onésimo Silveira)

Lá vem nhô Cacai da ourela do mar
Acenando a sua desilusão
De todos os continentes!
Ele traz o peito afogado em maresias
E os olhos cansados da distância das horas...

Lá vem nhô Cacai
Com a boca amarga de sal
A boiar o seu corpo morto
Na calmaria da tarde!

Nhô Cacai vem alimentar os seus filhos
Com histórias de sereias...
Com histórias das farturas das Américas...

Os seus filhos acreditam nas Américas
E sabem dormir com fome...



quinta-feira, 25 de agosto de 2016

#196 - TENDERLY (Frederico Barbosa)

Claro
som
sem
brumas
redescobre
Debussy.

Incerto azul
de bardo
índigo
Mallarmé
desperto
ecoa.

O fauno é outro
e se levanta
em clarinete
sobre a lagoa
mar Ellington piano.

A orquestra é uma cobra
ninfa seduzida
à sua volta
o clarinete
olhos abertos
evoca vento
acorda e nos devora.



terça-feira, 23 de agosto de 2016

#195 - AO LONGE OS BARCOS DE FLORES (Camilo Pessanha)

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
-- Perdida voz que entre as mais se exila,
-- Festões de som dissimulando a hora

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém... Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...


segunda-feira, 22 de agosto de 2016

#194 - POÉTICA (Cassiano Ricardo)

1

Que é a Poesia?
                        uma ilha
                        cercada
             de palavras
                        por todos
                        os lados.


2

Que é o Poeta?
                       um homem
que trabalha o poema
com o suor do seu rosto.
                       Um homem
             que tem fome
             como qualquer outro
                       homem.



domingo, 21 de agosto de 2016

#193 - SINAL VERMELHO (Gastão Cruz)

No carro ao
lado alguém desconhecido
exibe o seu Record no tablier
Como eu partirá quando o apito
do incorruptível árbitro o expulsar
de vez



sexta-feira, 19 de agosto de 2016

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

#191 - VIDA VITORIOSA (João de Barros)

Foi uma vida vitoriosa, é certo,
A vida que vivi nesta jornada,
-- Não da vitória que se vê de perto,
E que se alcança, apenas desejada.

Não do triunfo que sorri, incerto,
E logo é fumo, e é pó, e é cinza, e é nada,
-- Mas doutra glória que ao meu peito aperto,
E só eu vejo, pura e recatada.

Porque em silêncio conquistei, lutando,
-- Quantas vezes perdido e miserando,
Quantas vezes vencendo a própria dor --

Esta alegria de passar na vida
Sendo uma força, que jamais duvida,
E uma voz clara, como a Voz do Amor!


quarta-feira, 17 de agosto de 2016

#190 - O NOVO HOMEM (Amélia Veiga)

Traz nos olhos punhais
e mensagens secretas...
E zagaias de sonho
nas mãos negras, desertas...

Olha para nós a direito
e tem um riso branco
que lhe dilata o peito...

Passa um frio entre os homens
de receio e de espanto...

1961


#189 - AUTO-RETRATO COM MUSA (Vasco Graça Moura)

3.

quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço

tal porte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar,

nem riso tão contente,
contido e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio
quem amo tem feições

de uma beleza grave
e música na alma.
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.

é quando eu sinto a musa
pousando no meu ombro
sua cabeça. assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.


terça-feira, 16 de agosto de 2016

#188 - DO QUE A VIDA PODERIA TER SIDO (José Carlos Barros)

Os amigos juntam-se e falam do passado,
da música que já não se ouve na rádio,
do inverno em que choveu semanas a fio
e o rio saiu das margens para desenhar

nos troncos das árvores os círculos imperfeitos
da idade. Eles sabem para si mesmos que falam
do que nunca existiu: das mulheres
que se renderam para sempre às palavras do amor,

das perdizes caindo de asa nas encostas
iluminadas da urze, das corridas memoráveis
do vinte e cinco de abril, das tardes de domingo
que haveriam de envergonhar a uefa

se a televisão estivesse presente nas finais dos torneios
dos bombeiros voluntários. É disso que os amigos
falam: do que a vida poderia ter sido
se não fosse a filha da puta da vida que foi.



domingo, 14 de agosto de 2016

#187 - MANDIMBA METÓNIA VILA CABRAL (Alberto de Lacerda)

Infância triste mas encantada
Em casas grandes mas sombrias
Outras crianças não as havia
Os meus amigos? Dois grandes gatos
A luz e o vento a água a água

Se alguém tocava velho e roufenho
O gramofone de manivela
Eu perturbava-me e a quem me via
Com lágrimas que não entendia

Havia festas de vez em quando
Eram janelas do paraíso
Lembro os adultos Como eram estranhos
Como eram estranhos e imprevistos

Como eu sentia que não sei onde
Um outro reino de festa e luz
Inteiramente me pertencia
E só de longe naquelas casas
Naquela gente que me era fria
Muito por alto se reflectia

Vila Cabral, 22-2-63


#186 - BARCOS DE PAPEL (Guilherme de Almeida)

Quando a chuva cessava e um vento fino
franzia a tarde tímida e lavada,
eu saía a brincar pela calçada,
nos meus tempos felizes de menino.

Fazia de papel toda uma armada
e, estendendo meu braço pequenino,
eu soltava os barquinhos, sem destino,
ao longo das sarjetas, na enxurrada...

Fiquei moço. E hoje sei, pensando neles,
que não são barcos de ouro os meus ideais:
são feitos de papel, tal como aqueles,

perfeitamente, exatamente iguais...
-- que os meus barquinhos, lá se foram eles!
foram-se embora e não voltaram mais!



sábado, 13 de agosto de 2016

#185 - A UMA BICICLETA DESENHADA NA CELA (Luís Veiga Leitão)

Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste.

Aqui,
onde o dia é mal nascido,
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido...

Bem haja a mão que te criou!

Olhos montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.



sexta-feira, 12 de agosto de 2016

#184 - PASSEI A VIDA... (Agostinho Neto)

Passei a vida a servir
os meus dias passei-os a chorar
no meu mundo
meu inferno.

Os braços trabalhando
para um mundo alheio
os meus dedos musicando
para o mundo alheio.

Meu mundo
meu inferno.

E ainda choro hoje
mas de vergonha
de pejo
por ter vivido num mundo inferno
sem ter tido ao menos alma para morrer


1948



quinta-feira, 11 de agosto de 2016

#183 - O SELO DOS DIAS (Carlos Nejar)

Dias virão, dias virão
a golpes secos
de potros
no chão.

Não sei se já nasceram,
não sei onde se encontram
os dias 
que amo tanto.

(No cano de um fuzil
ou no cano do espanto).

Dias virão virão,
lobos de aragem
e a todos morderão
com sua liberdade.

Que pássaros 
se aplumam
nas penas destes pássaros?

Serão dias saltando
aos ombros
de outros ombros,
até onde houver ombros
irão dias brotando.



quarta-feira, 10 de agosto de 2016

#182 - A PRIMEIRA BISNETA (João de Barros)

Para o futuro neto da Teresa e do
Marcelo. Na noite de Natal de 1956.

Tal o menino Jesus
os meninos nascem nus...
Mas Aquele não tem frio,
vem lá do céu direitinho,
e no céu tudo é quentinho.
Os outros, quanto arrepio
no seu corpinho macio!
Então a Avó, com afã,
para evitar-lhe percalços,
por causa dos pés descalços,
corre a buscar sapatinhos
de boa lã
(boa lã da Covilhã)
que os pèzinhos aconchega...
Nenhum inverno lhes chega!
-- Oferta de puro amor
que é sempre o melhor calor.





terça-feira, 9 de agosto de 2016

#181 - MONUMENTO A D. JOSÉ, LISBOA (Mário António)

Opulento pedestal
Luxuriante de vida
Tropical
Sobre que pousas
-- Rei europeu
Ou marajá hindú?

«...da Arábia, da Pérsia, da Índia...»
Ausente da pureza deste céu
Rei europeu
Apetecendo palanque e especiaria
Que país foi o teu?

Esta nesga de Europa
Com vinhedos
Ou sonhadas florestas
Onde enviavas a correr
Fidalgos-cavaleiros
Criados de teus paços?

Teus cavalos ligeiros
Ou pesados elefantes 
Tropicais?...
-- Tuas glórias distantes
Nunca vistas
Sonhadas
Marajá desterrado!



segunda-feira, 8 de agosto de 2016

domingo, 7 de agosto de 2016

#179 - CONVICÇÃO (Branquinho da Fonseca)

Cai a tarde, cai a noite...
As sombras erguem-se do chão, fazem danças, contra-danças, rondas, ciladas.
As luzes da Câmara Municipal, presas aos fios que as vivem, guardam-nas e elas dançam-lhes de roda.
Eu passo; mas não passo como uma sombra: sou eu. Tenho um cartão de identidade e fatos por medida.




sexta-feira, 5 de agosto de 2016

#178 - CANGA (Carlos Nejar)

Jesualdo Monte, não és homem.
És um burro
carregado de ossos;
as palavras, insetos,
volteiam-te a garupa;
até a carne é hostil
sob a carcaça
e o presságio dos seres
te enternece.

Não te movem as fendas,
nem as urzes,
nem o jogo de vozes,
o repouso das tardes
e as vigas
que desceram ao rio 
no teu lombo.

O mundo te apertou com sua cincha
e tudo em ti
transpõe o desespero,
desapegando patas e raízes.

É esta a condição de não ser homem:
dormir, placidamente, sem remorsos,
no curral dos mortos.

É esta a condição de não ser homem:
ruminar o assombro, junto ao feno,
receber o milagre sem transtorno,
seguindo sempre, onde manda o dono.

É esta a condição de não ser homem:
lanhado o casco por chicote lesto,
zurrar, apenas, mastigando o freio.

É esta a condição de não ser homem.



quinta-feira, 4 de agosto de 2016

#177 - OS INSIGNIFICANTES (José Tolentino Mendonça)

O custo das casas
por incrível que pareça
sugere a possibilidade
de uma outra vida
a alma não mora debaixo do seu tempo
traz de tão longe a fragrância
de uma vegetação que cresce

mais abaixo junto à represa
um trecho de sombra
a estação tornou tudo amarelo uma última vez
o pinheiro, o rumor dos caçadores, a corrida atrapalhada da perdiz

nas vagas recordações
a orla de uma alegria que ninguém viu

os insignificantes flutuam
ao vento contínuo de Deus



quarta-feira, 3 de agosto de 2016

#176 - POEMA CONFIADO À MEMÓRIA DE NORA MITRANI (Alexandre O'Neill)

Se eu pudesse dizer-te: -- Senta aqui
nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,
ó amável bichinho, o pêlo fino;
depois, a contra-pêlo, provocar-te!
Se eu pudesse juntar o mesmo fio
(infinito colar!) cada arrepio
que aos viajeiros comprazidos dedos
fizesse descobrir novos enredos!
Se eu pudesse fechar-te nesta mão,
tecedeira fiel de tantas linhas,
de tanto enredo imaginário, vão,
e incitar alguém: -- Vê se adivinhas...
      Então um fértil jogo amor seria.
      Não este descerrar a mão vazia!