Não quero falar de coisas amenas
cantar a vida com voz humilde e abafada
que mesmo quando grita de dor
grita de forma suave quase calada
não quero fazer par com meus contemporâneos
coaxar de sapos à luz neo-neo-neo-parnasiana
coisas amenas cantilenas
são sempre as mesmas
contemplam as palavras e os poetas como se fossem deuses
como se fossem a nossa própria realidade
humildade que me dá asco e cansaço
quero empurrar a porta aos trambolhões
romper a madrugada molhada
o hímen do porvir é sempre mais doce
vanguarda vanguarda vanguarda sou seu porta-estandarte
não sinto medo de ser mais do que poderei ser
meu desejo me precede
coisas amenas flores no estrume seco
coisas amenas coisas pequenas
que de tão pequenas se diluem em mim
o retorno da bossa-nova em rosto jovens
e envelhecidos pela inércia
endeusaram chico
endeusaram caetano
endeusaram jobim
pau
pedra
fim do caminho
resto de toco
um cu
sozinho
sexta-feira, 31 de julho de 2020
terça-feira, 28 de julho de 2020
#336 - "Ai árvores ali" (António Pedro)
Ai árvores ali
e duras!,... ai!:
e aqui
terra queimada
só.
Bé!,
o pó
da ventania
sufoca!
...Lá na baía
ou doca
ou o que é,
lá do vapor
parecia
melhor,
embora fosse careca
a terra seca,
e o sol queimasse
e adormentasse
já.
Cá
há mais do que calor,
há dor
do sol!
...e a preta
de lenço branco
lá no barranco
da achada
tem o ar de um sobressalto
...E andam sombras
pelas sombras
como havia no mar alto…
No entanto,
de não estar
habituado a encontrar
estas sombras aqui,
ainda não consegui
o meu encanto:
pasmar
-- Paisagem, quem me adivinha? --
E andam sombras pelas sombras
enquanto a noite caminha,
dês que o luar dealbou…
Que tentaram ensombrar-me…
-- Mas quem foi que me assombrou?
Quem me ensombra
não me assombra!
...Apenas me sobressalta
não ver os mortos da sombra
que me fazem tanta falta!...
e duras!,... ai!:
e aqui
terra queimada
só.
Bé!,
o pó
da ventania
sufoca!
...Lá na baía
ou doca
ou o que é,
lá do vapor
parecia
melhor,
embora fosse careca
a terra seca,
e o sol queimasse
e adormentasse
já.
Cá
há mais do que calor,
há dor
do sol!
...e a preta
de lenço branco
lá no barranco
da achada
tem o ar de um sobressalto
...E andam sombras
pelas sombras
como havia no mar alto…
No entanto,
de não estar
habituado a encontrar
estas sombras aqui,
ainda não consegui
o meu encanto:
pasmar
-- Paisagem, quem me adivinha? --
E andam sombras pelas sombras
enquanto a noite caminha,
dês que o luar dealbou…
Que tentaram ensombrar-me…
-- Mas quem foi que me assombrou?
Quem me ensombra
não me assombra!
...Apenas me sobressalta
não ver os mortos da sombra
que me fazem tanta falta!...
sexta-feira, 24 de julho de 2020
#335 - SONETO MENOR À CHEGADA DO VERÃO (Eugénio de Andrade)
Eis como o verão
chega de súbito,
com seus potros fulvos,
seus dentes miúdos,
seus múltiplos, longos
corredores de cal,
as paredes nuas,
a luz de metal,
seu dardo mais puro
cravado na terra,
cobras que despertam
no silêncio duro…
Eis como o verão
entra no poema.
chega de súbito,
com seus potros fulvos,
seus dentes miúdos,
seus múltiplos, longos
corredores de cal,
as paredes nuas,
a luz de metal,
seu dardo mais puro
cravado na terra,
cobras que despertam
no silêncio duro…
Eis como o verão
entra no poema.
quarta-feira, 22 de julho de 2020
#334 - DIA 1 (Pedro Alvim)
Hoje não há leite.
O alumínio
não foi
à flor do lume.
Que silêncio
quadrado
na cozinha!
Lá fora
-- um frio só
de rua fria.
Que risco
tão um
o número
domingo, 19 de julho de 2020
#333 - A ORIENTE DE MIM (Adalberto Alves)
A oriente de mim
há uma estrada
por onde vim
trazido a esta parte.
Foi construída com arte
e desemboca no Nada.
há uma estrada
por onde vim
trazido a esta parte.
Foi construída com arte
e desemboca no Nada.
Março, 1987
quinta-feira, 16 de julho de 2020
#332 - MAR DE SETEMBRO (Eugénio de Andrade)
Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves -- só
alma e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto,
puríssimo, doirado.
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves -- só
alma e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto,
puríssimo, doirado.
segunda-feira, 13 de julho de 2020
#331 - SANTO E SENHA (Miguel Torga)
Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.
Deixem, que vai apenas
Beber água de Sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.
Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora
Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.
Deixem, que vai apenas
Beber água de Sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.
Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora
Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão.
quarta-feira, 8 de julho de 2020
#330 - INTRODUÇÃO AO CANTO (Eugénio de Andrade)
Ergue-te de mim,
pura chama do meu canto.
Luz terrestre, fragrância.
Ergue-te, jasmim!
Ergue-te, e aquece
a cal e a pedra,
as mãos e a alma.
Inunda, reina, e amanhece.
Ao menos tu sê ave,
primavera excessiva!
Ergue-te de mim:
canta, delira, arde!
pura chama do meu canto.
Luz terrestre, fragrância.
Ergue-te, jasmim!
Ergue-te, e aquece
a cal e a pedra,
as mãos e a alma.
Inunda, reina, e amanhece.
Ao menos tu sê ave,
primavera excessiva!
Ergue-te de mim:
canta, delira, arde!
segunda-feira, 6 de julho de 2020
#329 - CIFRA (Miguel Torga)
A imagem é o clarão
Emprestado à negrura.
Serve passivamente
A noite que ilumina.
Raio que não fulmina
A vida que atravessa,
A sua luz termina
Onde outra luz começa…
Emprestado à negrura.
Serve passivamente
A noite que ilumina.
Raio que não fulmina
A vida que atravessa,
A sua luz termina
Onde outra luz começa…
domingo, 5 de julho de 2020
#328 - ANACREÔNTICA (António Feijó)
Teu rosto é como
Um róseo pomo,
Que eu só desejo
Morder num beijo.
Último tomo
De amor que eu domo
Enquanto almejo
O grato ensejo...
O afecto que
Me enchera de
Paixão fatal
Vê com ardor
Teu belo cor-
po escultural!
quinta-feira, 2 de julho de 2020
#327 - CORAÇÃO HABITADO (Eugénio de Andrade)
Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.
Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.
Alguns pensam que são as mãos de Deus
-- eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.
Não lhe toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva!
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.
Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.
Alguns pensam que são as mãos de Deus
-- eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.
Não lhe toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva!
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.
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