sexta-feira, 30 de setembro de 2016

#223 - "Os antigos eram jovens, e nós," (António Franco Alexandre)

Os antigos eram jovens, e nós,
disse Bacon num lúcido momento,
somos velhos, embrulhados em
constante movimento. Hoje podia
ter vinte anos, um corpo diferente
capaz de reflectir
o sol, que além das nuvens brilha;

saberia, com arte de palavras,
dizer, do céu, os nomes mais completos;
de barbas brancas visitando asilos
os nossos filhos nos dariam fama.
E ainda assim alguma
pequena coisa perderia: o céu, talvez,
na sua cor mais fria;

manhãs de temporal, quando distantes
relâmpagos azuis cobrem a terra;
o cheiro a chuva, o sabor de alguns frutos;
estória por contar, livros por ler;
a sábia opinião do chanceler;
e sobretudo, no teu rosto, o véu
do antigo amor chamado juventude.



quinta-feira, 29 de setembro de 2016

#222 - IMAGEM (Alberto de Lacerda)

No filme azul do desdobrado céu
decantarei a mínima magia
das sensações mais puras, melodia
da minha infância, onde era apenas Eu.

Da realidade nua desce um véu
que, já sem mar, apenas maresia,
me vem tecer aquela chuva fria
que prende esta janela ao claro céu.

Despido o ouropel desvalioso,
já não apenas servo, mas o Rei
da luz da minha lâmpada romeira,

assim procuro o centro misterioso
do mundo que hoje habito, onde serei
concêntrica expressão da vida inteira.





terça-feira, 27 de setembro de 2016

#221 - "É pela tarde, quando a luz esmorece" (Reinaldo Ferreira [F.º])

É pela tarde, quando a luz esmorece
E as ruas lembram singulares colmeias,
Que a alegria dos outros me entristece
E aguço o faro para as dores alheias.

Um que, impaciente, para o lar regresse,
As viaturas que cruzam cheias
Dos que fazem da vida uma quermesse,
São para mim, faminto, odor de ceias.

Sentimento cruel de quem se afasta,
Por orgulho repele, e se desgasta
No esforço de fugir à multidão.

Mas castigo de quem, por imprudente,
Já não pode deter-se na vertente
Que vai da liberdade à solidão.



segunda-feira, 26 de setembro de 2016

#220 - A ESTRELA (Manuel Bandeira)

Vi uma estrela tão alta,
vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sòzinha
luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
para a minha companhia
não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?

E ouvia-a na sombra funda
responder que assim fazia
para dar uma esperança
mais triste ao fim do meu dia.



domingo, 25 de setembro de 2016

#219 - ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA, COM'É FREMOSA E BOA E À GRAN PODER. (Afonso X, O Sábio)

 Rosa das rosas e Fror das frores.
Dona das donas, Senor das senores.

Rosa de beldad' e de parecer
e Fror d'alegria e de prazer,
Dona en mui piadosa seer,
Sennor en toller coitas e doores.
   Rosa das rosas e Fror das frores...

Atal Sennor dev' ome muit' amar,
que de todo mal o pode guardar;
e pode-ll' os peccados perdõar,
que faz no mundo per maos sabores.
   Rosa das rosas e Fror das frores...

Devemo-la muit' amar e servir,
ca punna de nos guardar de falir;
des i dos erros nos faz repentir,
que nos fazemos come pecadores.
   Rosa das rosas e Fror das frores...

Esta donna que tenno por Sennor
e de que quero seer trobador,
se eu per ren poss' aver seu amor,
dou ao demo os outros amores.
   Rosa das rosas e Fror das frores...


quinta-feira, 22 de setembro de 2016

#218 - PARTIR!... (Manuel da Fonseca)

Eu vou-me embora para além do Tejo,
não posso mais ficar!

Já sei de cor os passos de cada dia,
na boca as mesmas palavras
batidas nos meus ouvidos...
-- Ai as desgraças humanas destas paisagens iguais!...
Abro os olhos e não vejo
já não ando, já não oiço...
Não posso mais...
Grita-me a Vida de longe
e eu vou-me embora para além do Tejo.

Passa a ave no céu bebendo azul e diz:    Vem!
O vento envolve-me numa carícia,
envolve-me e murmura: -- Vem!
As ondas estalam nas praias e vão mar fora,
as mãos de espuma a prender-me os sentidos
chamam no fundo dos meus olhos: -- Vem!

-- Camaradas, eu vou, esperai um pouco...
Ai, mas a vida nunca espera por ninguém...
E a noite chega vingadora;
o vento rasga-me o fato,
as ondas molham-me a carne
e a ave pia misticamente no ar;
abro os olhos e não vejo,
já não ando, já não oiço
-- e fico, desgraçado de ficar!...





quarta-feira, 21 de setembro de 2016

#217 - BOAS NOITES (João de Deus)

Estava uma lavadeira
A lavar numa ribeira
Quando chega um caçador:

-- Boas tardes, lavadeira!

-- Boas tardes, caçador!

-- Sumiu-se-me a perdigueira
Ali naquela ladeira;
Não me fazeis o favor
De me dizer se a brejeira
Passou aqui a ribeira?

-- Olhai que, dessa maneira,
Até um dia, senhor,
Perdereis a caladeira,
Que ainda é perda maior.

-- Que me importa, lavadeira!
Aqui na minha algibeira
Trago dobrado valor...
Assim eu fora senhor
De levar a vida inteira
Só a ver o meu amor
Lavar roupa na ribeira!

-- Talvez que fosse melhor...
Ver coser a costureira!
Vir de ladeira em ladeira
Apanhar esta canseira,
E tudo só por amor
De ver uma lavadeira
Lavar roupa na ribeira...
É escusado, senhor!

-- Boas noites,... lavadeira!

-- Boas noites, caçador!...




terça-feira, 20 de setembro de 2016

#216 - UMA CANTIGA (Armindo Rodrigues)

O que da razão não faz
uma firme barricada
de que é que será capaz
senão da dor de ser nada?
Pois vale a pena viver
a contrariar a vida?
Antes a vida perder
do que esta morte fingida.
Fique às nuvens e ao luar
a cobardia do céu.
Só quem sempre se afirmar
nunca de homem se perdeu.



segunda-feira, 19 de setembro de 2016

#215 - "o poeta que há em mim" (Chacal)

o poeta que há em mim
não é como o escrivão que há em ti
funcionário autárquico

     o profeta que há em mim
     não é como a cartomante que há em ti
     cigana fulana

o panfleto que há em mim
não é como o jornalista que há em ti
matéria paga

     o pateta que há em mim
     não é como o esteta que há em ti
     cana a la kant

o poeta que há em mim
é como o vôo no homem pressentido



sexta-feira, 16 de setembro de 2016

#214 - "A que morreu às portas de Madrid," (Reinaldo Ferreira [F.º])

A que morreu às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
Teve a sorte que quis,
Teve o fim que escolheu.
Nunca, passiva e aterrada, ela rezou.
E antes de flor, foi, como tantas, pomo.
Ninguém a virgindade lhe roubou
Depois dum saque -- antes a deu
A quem lha desejou,
Na lama dum reduto,
Sem náusea mas sem cio,
Sob a manta comum,
A pretexto do frio.
Não quis na retaguarda aligeirar,
Entre «champagne», aos generais senis,
As horas de lazer.
Não quis, activa e boa, tricotar
Agasalhos pueris,
No sossego dum lar.
Não sonhou minorar,
Num heroísmo branco,
De bicho de hospital,
A aflição dos aflitos.

Uma noite, às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
À hora tal, atacou e morreu.

Teve a sorte que quis.
Teve o fim que escolheu.



quinta-feira, 15 de setembro de 2016

#213 - SONETO DE SEPARAÇÃO (Vinicius de Moraes)

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se triste o que se fez amante
E de sòzinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.



quarta-feira, 14 de setembro de 2016

#212 - NOME (Arnaldo Antunes)

algo é o nome do homem
coisa é o nome do homem
homem é o nome do cara
isso é o nome da coisa
cara é o nome do rosto
fome é o nome do moço
homem é o nome do troço
osso é o nome do fóssil
corpo é o nome do morto
homem é o nome do outro




terça-feira, 13 de setembro de 2016

#211 - CANÇÃO NOCTURNA (Reinaldo Ferreira [F.º])

Café de cais
onde se juntam
anónimos de iguais,
os ratos dos porões,
babel de todos os calões,
rio de fumo e de incontido cio,
sexuado rio,
que busca, único mar,
mulheres de pernoitar,
unge-te a nojo, não Anfitrite,
fina ficção marinha,
mas nauseabundo
e tutelar
o vulto familiar
da Virgem Vício,
Nossa Senhora do Baixo Mundo.





segunda-feira, 12 de setembro de 2016

#210 - RENÚNCIA (Manuel Bandeira)

Chora de manso e no íntimo... Procura
curtir em queixa o mal que te crucia:
o mundo é sem piedade e até riria
da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria
e será, ela só, tua ventura...

A vida é vã como a sombra que passa...
Sofre sereno e d'alma sobranceira,
sem um grito sequer, tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira,
e pede humildemente a Deus que a faça
tua doce e constante companheira...




domingo, 11 de setembro de 2016

#209 - NO MEIO DO CAMINHO (Carlos Drummond de Andrade)

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida das minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

#208 - PAPO DE ÍNDIO (Chacal)

Veio uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui êles disserum qui chamava açucri
Aí eles falarum e nós fechamu a cara
depois êles arrepitirum e nós fechamu o corpo
Aí eles insistirum e nós comemu êles.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

#207 - COLONO (João Fonseca Amaral)

à memória de João Luís do Amaral

Quase perdida a memória das frias águas
escorrendo pelas encostas
bíblico fitavas esta chuva
estes ventos
estas árvores de grandes sombras.

Os caminhos da juventude entre Douro e Minho
a casa velha da quinta dos invernos
-- tudo palavras de um livro arrumado na estante
que (para o manter vivo)
de longe em longe passava pelos olhos.

Pão levedado de erros e grandezas
aos dentes da vida te deste inteiro
enquanto a cidade nascia sob os teus pés
crescia
e as raízes da rotina milímetro por milímetro
se iam afundando.

Partiste
sem te despedires
para a licençla ilimitada mais definitiva
mas entre Chamanculo e Xipamanine
o chão que pisaste
retém teu nome para sempre.

Maotas, 1953

terça-feira, 6 de setembro de 2016

#205 - INÊS DE LEIRIA (Afonso Lopes Vieira)

Encontrou Fernão Mendes
No interior da China
(E em que apuros ele ia!)
A velha portuguesa,
Chamada Inês de Leiria,
Que de repente reza:
Padre Nosso que estais nos céus...
Era de português o que sabia.

Ouvindo Fernão Mendes
Esta voz que soava
(Fernão cativo e cheio de tristeza!)
O português sorria...
Padre Nosso, que estais nos céus...
A velha mais não sabia,
Mas bastava.

Boa Inês de Leiria,
Cara patrícia minha,
Embora te fizesse
A aventura imortal
De Portugal
Chinesa muito mais que portuguesa,
-- Pois por esse sorriso de Fernão
Tocas-me o coração.

Deste-lhe em tal ensejo,
Entre as misérias da viagem,
O mais gostoso e saboroso beijo
-- O da Linguagem!






domingo, 4 de setembro de 2016

#204 - CAIXA DE AMÊNDOAS (João Saraiva)

Ireis, amêndoas, saber
Que incomparável ventura
Às vezes há em sofrer.

Na boca vermelha e pura
Onde vos ides perder,
Se vos atrai certa alvura,
Muito deveis padecer.

Desta espantosa tortura
Só vos podeis defender
Duma maneira segura,
Dando-lhe o gozo e a doçura
De vos sentir derreter.



sábado, 3 de setembro de 2016

#203 - STARS FELL ON ALABAMA (Frederico Barbosa)

Cannonball plantando o tema
bala de som
redondo e reto
brilho de balão.

Nós e o nosso drama
beijo em campo branco
coração martelo
e lá no centro
eu e você.

Cannonball colhendo tempo
som canhão de pesadelo
no rosto o sopro negro
«dos combates que vão dentro do peito».

Estrelas caindo aqui
ontem, a noite
plano imaginado
e lá no centro
Cannonball arde por dentro.



sexta-feira, 2 de setembro de 2016

#202 - SÃO JOÃO DA CRUZ, Murilo Mendes

Viver organizando o diamante
(Intuindo sua face) e o escondendo.
Tratá-lo com ternura castigada.
Nem mesmo no deserto suspendê-lo.
 
Mas
Viver consumido da sua graça.
Obedecer a esse fogo frio
Que se resolve em ponto rarefeito.
Viver: do seu silêncio se aprendendo.
Não temer sua perda em noite obscura.
E do próprio diamante já esquecido,
Morrer, do seu esqueleto esvaziado:
Para vir a ser tudo, é preciso ser nada.