terça-feira, 30 de junho de 2020

#326 - "Gregor transformou-se em barata gigante." (António Franco Alexandre)

Gregor transformou-se em barata gigante.
Eu não: fiz-me aranhiço,
tão leve que uma leve brisa o faz
oscilar no seu fio de baba lisa.
Até que, contra a lei da natureza,
creio que tenho peso negativo,
e me elevo no ar se me não prendo
ao canto mais escuro desta ilha.
Quando descer à teia derradeira
não se verá no mundo alteração, ou só
talvez alguma mosca mais contente.
Em noites de luar, na alta esquina,
ficará a brilhar, mas sem ser vista,
a estrela que tracei como armadilha.



quinta-feira, 25 de junho de 2020

#325 - LETREIRO (Miguel Torga)

Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim -- meu principal motivo
De insatisfação --,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não sei me conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.



terça-feira, 23 de junho de 2020

#324 - SONETO (Camilo Pessanha)

Esvelta surge! Vem das águas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexíveis e o seio fremente...
Morre-me a boca por beijar a tua.

Sem vil pudor! Do que há que ter vergonha?
Eis-me formoso, moço e casto, forte.
Tão branco o peito! -- para o expor à Morte...
Mas que ora -- a infame! -- não se te anteponha.

A hidra torpe!... Que a estrangulo... Esmago-a
De encontro à rocha onde a cabeça te há-de,
Com os cabelos escorrendo água,

Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.



sábado, 20 de junho de 2020

#323 - PRIMEIRAMENTE (Eugénio de Andrade)

Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus.

E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, com a solidão aberta nos dedos como um cravo.

Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca -- e sempre a tua boca! -- comece de novo a nascer na minha boca.

Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a minha face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu...


quarta-feira, 17 de junho de 2020

#322 - MORTE: SUAS CONTAS DE DIVIDIR (Alexandre Pinheiro Torres)

O horizonte divide-nos nas suas mentiras:
ou é uma árvore ou um rio e todos os anzóis que engoliu
ou uma mandíbula de peixe ou o sol: o velho incendiário ambulante.
A morte essa é um maravilhoso número indivisível.



segunda-feira, 15 de junho de 2020

#321 - "Deixamos passar os prazos de entrega" (Rui Almeida)

Deixamos passar os prazos de entrega
Sem que nos peçam contas. Somos nada
Mais do que tarefeiros postos à
Porta da repartição a ver quem


Entra tomado do assombro fácil
Indispensável aos pobres coitados
Como nós. Já não vamos a tempo
De desatar as sandálias ao mestre


Momentâneo. O nosso lugar
Está vago, somos de outro jeito,
De outro tom de voz. Amanhã
Já não haverá quem se lembre.





terça-feira, 9 de junho de 2020

#320 - "Julgam-me mui sabedor;" (António Aleixo)

Julgam-me mui sabedor;
e é tão grande o meu saber
que desconheço o valor
das quadras que sei fazer!



sábado, 6 de junho de 2020

#319 - DISSOLUÇÃO (Carlos Drummond de Andrade)

Escurece, e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite.

E com ela aceito que brote
uma ordem outra de seres
e coisas não figuradas.
Braços cruzados.

Vazio de quanto amávamos,
mais vasto é o céu. Povoações
surgem do vácuo.
Habito alguma?

E nem destaco minha pele
da confluente escuridão.
Um fim unânime concentra-se
e pousa no ar. Hesitando.

E aquele agressivo espírito
que o dia carreia consigo,
já não oprime. Assim a paz,
destroçada.

Vai durar mil anos, ou
extinguir-se na cor do galo?
Esta rosa é definitiva,
ainda que pobre.

Imaginação, falsa demente,
já te desprezo. E tu, palavra.
No mundo, perene trânsito,
calamo-nos.
E sem alma, corpo, és suave.


quarta-feira, 3 de junho de 2020

#318 - FLORESTA CONVULSA (Alberto de Oliveira)

Floresta de altas árvores, escuta:
Em minha dor vim conversar contigo,
Como no seio do melhor amigo,
Descanso aqui de tormentosa luta.


Troncos da solidão intacta e bruta,
Sabei… Ah! que, porém, como um castigo
Vos estorceis, e o som do que vos digo
Vai morrer longe em solitária gruta.


Que tendes, vegetais?... remorso?... crime?...
Açoita-vos o vento, como um bando
De fúrias e anjos maus, que nós não vemos?


Mas explicai-vos ou primeiro ouvi-me,
Que a um tempo assim braceando, assim gritando,
Assim chorando não nos entendemos.



segunda-feira, 1 de junho de 2020

#317 - MERIDIONAL (Cesário Verde)

CABELOS


Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;

Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.

Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.

Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!

E ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de teres cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;

Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.

Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,
E vais na direcção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e enlanguescer.

E a tua cabeleira, errante pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de Verão,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.

E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.

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Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.