Gregor transformou-se em barata gigante.
Eu não: fiz-me aranhiço,
tão leve que uma leve brisa o faz
oscilar no seu fio de baba lisa.
Até que, contra a lei da natureza,
creio que tenho peso negativo,
e me elevo no ar se me não prendo
ao canto mais escuro desta ilha.
Quando descer à teia derradeira
não se verá no mundo alteração, ou só
talvez alguma mosca mais contente.
Em noites de luar, na alta esquina,
ficará a brilhar, mas sem ser vista,
a estrela que tracei como armadilha.
terça-feira, 30 de junho de 2020
quinta-feira, 25 de junho de 2020
#325 - LETREIRO (Miguel Torga)
Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim -- meu principal motivo
De insatisfação --,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não sei me conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim -- meu principal motivo
De insatisfação --,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não sei me conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.
terça-feira, 23 de junho de 2020
#324 - SONETO (Camilo Pessanha)
Esvelta surge! Vem das águas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexíveis e o seio fremente...
Morre-me a boca por beijar a tua.
Sem vil pudor! Do que há que ter vergonha?
Eis-me formoso, moço e casto, forte.
Tão branco o peito! -- para o expor à Morte...
Mas que ora -- a infame! -- não se te anteponha.
A hidra torpe!... Que a estrangulo... Esmago-a
De encontro à rocha onde a cabeça te há-de,
Com os cabelos escorrendo água,
Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
sábado, 20 de junho de 2020
#323 - PRIMEIRAMENTE (Eugénio de Andrade)
Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus.
E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, com a solidão aberta nos dedos como um cravo.
Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca -- e sempre a tua boca! -- comece de novo a nascer na minha boca.
Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a minha face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu...
E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, com a solidão aberta nos dedos como um cravo.
Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca -- e sempre a tua boca! -- comece de novo a nascer na minha boca.
Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a minha face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu...
quarta-feira, 17 de junho de 2020
#322 - MORTE: SUAS CONTAS DE DIVIDIR (Alexandre Pinheiro Torres)
O horizonte divide-nos nas suas mentiras:
ou é uma árvore ou um rio e todos os anzóis que engoliu
ou uma mandíbula de peixe ou o sol: o velho incendiário ambulante.
A morte essa é um maravilhoso número indivisível.
ou é uma árvore ou um rio e todos os anzóis que engoliu
ou uma mandíbula de peixe ou o sol: o velho incendiário ambulante.
A morte essa é um maravilhoso número indivisível.
segunda-feira, 15 de junho de 2020
#321 - "Deixamos passar os prazos de entrega" (Rui Almeida)
Deixamos passar os prazos de entrega
Sem que nos peçam contas. Somos nada
Mais do que tarefeiros postos à
Porta da repartição a ver quem
Entra tomado do assombro fácil
Indispensável aos pobres coitados
Como nós. Já não vamos a tempo
De desatar as sandálias ao mestre
Momentâneo. O nosso lugar
Está vago, somos de outro jeito,
De outro tom de voz. Amanhã
Já não haverá quem se lembre.
Sem que nos peçam contas. Somos nada
Mais do que tarefeiros postos à
Porta da repartição a ver quem
Entra tomado do assombro fácil
Indispensável aos pobres coitados
Como nós. Já não vamos a tempo
De desatar as sandálias ao mestre
Momentâneo. O nosso lugar
Está vago, somos de outro jeito,
De outro tom de voz. Amanhã
Já não haverá quem se lembre.
terça-feira, 9 de junho de 2020
#320 - "Julgam-me mui sabedor;" (António Aleixo)
sábado, 6 de junho de 2020
#319 - DISSOLUÇÃO (Carlos Drummond de Andrade)
Escurece, e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite.
E com ela aceito que brote
uma ordem outra de seres
e coisas não figuradas.
Braços cruzados.
Vazio de quanto amávamos,
mais vasto é o céu. Povoações
surgem do vácuo.
Habito alguma?
E nem destaco minha pele
da confluente escuridão.
Um fim unânime concentra-se
e pousa no ar. Hesitando.
E aquele agressivo espírito
que o dia carreia consigo,
já não oprime. Assim a paz,
destroçada.
Vai durar mil anos, ou
extinguir-se na cor do galo?
Esta rosa é definitiva,
ainda que pobre.
Imaginação, falsa demente,
já te desprezo. E tu, palavra.
No mundo, perene trânsito,
calamo-nos.
E sem alma, corpo, és suave.
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite.
E com ela aceito que brote
uma ordem outra de seres
e coisas não figuradas.
Braços cruzados.
Vazio de quanto amávamos,
mais vasto é o céu. Povoações
surgem do vácuo.
Habito alguma?
E nem destaco minha pele
da confluente escuridão.
Um fim unânime concentra-se
e pousa no ar. Hesitando.
E aquele agressivo espírito
que o dia carreia consigo,
já não oprime. Assim a paz,
destroçada.
Vai durar mil anos, ou
extinguir-se na cor do galo?
Esta rosa é definitiva,
ainda que pobre.
Imaginação, falsa demente,
já te desprezo. E tu, palavra.
No mundo, perene trânsito,
calamo-nos.
E sem alma, corpo, és suave.
quarta-feira, 3 de junho de 2020
#318 - FLORESTA CONVULSA (Alberto de Oliveira)
Floresta de altas árvores, escuta:
Em minha dor vim conversar contigo,
Como no seio do melhor amigo,
Descanso aqui de tormentosa luta.
Troncos da solidão intacta e bruta,
Sabei… Ah! que, porém, como um castigo
Vos estorceis, e o som do que vos digo
Vai morrer longe em solitária gruta.
Que tendes, vegetais?... remorso?... crime?...
Açoita-vos o vento, como um bando
De fúrias e anjos maus, que nós não vemos?
Mas explicai-vos ou primeiro ouvi-me,
Que a um tempo assim braceando, assim gritando,
Assim chorando não nos entendemos.
Em minha dor vim conversar contigo,
Como no seio do melhor amigo,
Descanso aqui de tormentosa luta.
Troncos da solidão intacta e bruta,
Sabei… Ah! que, porém, como um castigo
Vos estorceis, e o som do que vos digo
Vai morrer longe em solitária gruta.
Que tendes, vegetais?... remorso?... crime?...
Açoita-vos o vento, como um bando
De fúrias e anjos maus, que nós não vemos?
Mas explicai-vos ou primeiro ouvi-me,
Que a um tempo assim braceando, assim gritando,
Assim chorando não nos entendemos.
segunda-feira, 1 de junho de 2020
#317 - MERIDIONAL (Cesário Verde)
CABELOS
Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;
Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.
Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.
Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!
E ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de teres cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;
Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.
Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,
E vais na direcção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e enlanguescer.
E a tua cabeleira, errante pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de Verão,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.
E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.
............................................................................
............................................................................
Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.
Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;
Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.
Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.
Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!
E ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de teres cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;
Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.
Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,
E vais na direcção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e enlanguescer.
E a tua cabeleira, errante pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de Verão,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.
E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.
............................................................................
............................................................................
Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.
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