quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

#30 - NOCTURNO DE LISBOA, Eugénio de Andrade

Pela noite adiante, com a morte na algibeira,
cada homem procura um rio para dormir,
e com os pés na lua ou num grão de areia
enrola-se no sono que lhe quer fugir.

Cada sonho morre às mãos doutro sonho.
Dez-réis de amor foram gastos a esperar.
O céu que nos promete um anjo bêbado
é um colchão sujo num quinto andar.


quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

#29 - NÃO HÁ SAÍDA (Jorge de Sena)

Não pode a maior parte
suportar mesmo o que admira.
No mais sincero e puro admirar
uma raiva flutua, uns dedos se crispam,
um gosto sorridente de poder, podendo,
pousar na grandeza pelo menos um pé sujo
que manche o limiar lavado pela paciência
dos séculos e de um homem só. Não
tenhamos ilusão alguma. Quando louvam,
é só se podem dar com uma mão e tirar com a outra.
Nada pode haver de limpo neste mundo podre.
E morremos todos manchados de lama
que irá pegada a nós dentro do tempo.
Abrindo-nos as páginas futuras, alguém há-de
ver delas soltar-se um seco pó que tomba
e que ele sacode, assopra, rindo
da humanidade torpe que abusou de nós.
Ninguém porém nos pode garantir
que ele mesmo, o que nos limpa, o não faça
para no tempo limiar deixar bem nítidos
senão seus pés ao menos os dedos do seu cuspo.

11/10/1973


#28 - IRONIA (António Botto)

Se a noite fosse mais negra,
--Quero dizer, mais sombria!,
Agora que me encontraste
E que me dás o teu braço
Para falarmos, de novo,
No que dissemos, um dia!...
Se a noite fosse mais negra!,
E se as estrelas brilhassem
Com menos intensidade,
Sim, não duvides, eu diria...,
-- Mas não me fites assim!
Diria que és o meu sonho
E a minha realidade.
Mas esta luz que se entorna
Intimida o meu sentir
E fico, mudo, a sofrer...
--Também a gente nunca sabe
Se a verdade no amor
Se deve calar ou dizer.


#26 - A UMA OLIVEIRA (Alexandre O'Neill)

Muito antes de Os Lusíadas diz-se que já aqui estavas.

Pré-camoniana,
sazão a sazão,
foste varejada séculos a fio.

O pinho viajou.
tu ficaste.

Ao som bárbaro de um rádio de pilhas,
desdobram toalhas
na tua sombra rala.


terça-feira, 29 de dezembro de 2015

#25 - REQUIEM PELA VELHA AMEIXIEIRA (Manuel Alegre)

Crepita a madeira na lareira
crepita a velha ameixieira
seus veios são as minhas próprias veias
vejo arder as ameixas e o verão
crepita aquela que deu sombra e agora dá calor
crepita o melro o verdilhão o rouxinol
e em cada tronco palpita
o próprio sol.
Crepita o sumo que escorria
pelo teu rosto onde o tempo também ardeu
crepita a velha ameixieira
e quem com ela crepita
sou eu.

Águeda, Natal, 2001


#24 - PRINCÍPIO DO PRAZER (Vasco Graça Moura)

à sua volta os pombos cor de lava
nos arabescos pretos do basalto
e gente, muita gente que passava
e se detinha a olhá-la em sobressalto

no seu olhar havia uma promessa
nos seus quadris dançava um desafio
num relance de barco mas sem pressa
que fosse ao sol-poente pelo rio

trazia nos cabelos um perfume
a derramar-se em praias de alabastro
e um brilho mais sombrio quase lume
de fogo-fátuo a coroar um mastro

seu porte altivo punha à vista o puro
princípio do prazer que caminhava
carnal e nobre e lúcido e seguro
com qualquer coisa de uma orquídea brava

e nas ruas da baixa pombalina
sua blusa encarnada era a bandeira
e o grito da revolta na retina
de quem fosse atrás dela a vida inteira.


segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

#23 - NOITE (Maria Teresa Horta)

De noite só quero vestido
o tecido dos teus dedos

e sobre os ombros a franja
do final dos cabelos

Sobre os seios quero
a marca
do sinal dos teus dentes

e a vergasta dos teus
lábios
a doer-me sobre o ventre

Nas pernas e no pescoço
quero a pressão mais
ardente

e da saliva o chicote
da tua língua dormente


domingo, 27 de dezembro de 2015

#22 - CONSOLO NA PRAIA (Carlos Drummond de Andrade)

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te -- de vez -- nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.


#21 - A PALAVRA (Saul Dias)

Só conheço, talvez, uma palavra.

Só quero dizer uma palavra.

A vida inteira para dizer uma palavra!

Felizes os que chegam a dizer uma palavra!


sábado, 26 de dezembro de 2015

#20 - "Há casas profundas" (Fernando Jorge Fabião)

Há casas profundas
onde resplandecem linhos desfeitos
passos de mulher
casas cheias de doçura
orações esquecidas
lâmpadas ardendo como conchas
casas com colinas de água por dentro
e contos de fadas
e anjos perplexos na caligrafia dos quartos
há casas atravessadas
por um dom luminoso e feroz
por um júbilo de rosas
e portas por abrir

Pedras Salgadas
21 de Agosto de 1999

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

#19 POEMA DO SER INÓSPITO (António Gedeão)

No cúbiculo estreito onde a criança
dorme no homem como um ser inóspito,
duplas são as paredes e, na boca,
uva de moscatel, açaime de aço.
Dorme, criança, dorme.
Não deixes ficar mal os que acreditam
no mito da inocência.
Dorme, e espera que os homens se aniquilem
enquanto dormes.
Reduz-te a imaginar como serão as flores,
os insectos, as pedras, as estrelas,
e tudo quanto é belo e se reflecte
nos olhos das crianças.
Imagina um luar que cresce e aquece
e faz da tua carne flor de loiça,
orquídea branca que o calor não cresta.
Imagina, imagina.
Mas, sobretudo, dorme.


#18 - "O lenhador caminha curvado pelo peso." (Adalberto Alves)

O lenhador caminha curvado pelo peso.
Leva às costas séculos de madeira.
Queima-la-á para se aquecer um instante.


quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

#17 - À NOITE DE NATAL (Frei Agostinho da Cruz)

Era noite de inverno longa e fria,
Cobria-se de neve o verde prado;
O rio se detinha congelado,
Mudava a folha cor, que ter soía.

Quando nas palhas duma estrebaria,
Entre dois animais brutos lançado,
Sem ter outro lugar no povoado
O Menino Jesus pobre jazia.

-- Meu amor, meu amor, porque quereis
(Dizia Sua Mãe) nesta aspereza
Acrescentar-me as dores que passais?

Aqui nestes meus braços estareis;
Que, se Vos força amor sofrer crueza,
O meu não pode agora sofrer mais.


#16 - E DE SÚBITO, EIS (Fernando Cabrita)

E de súbito, eis que aprendo
a grande hegemonia de todas as coisas.
Raparigas cruzavam a Edgware Road inteira
perdendo-se pela Marylebone
com ares de fantasmas
e do meu lugar junto a King's Arms,
tendo por cima o cartaz
anunciando o concerto de Johnny Cash
e na mão a cerveja arrefecida,
eu podia vê-las passar e quase diriam que eram belas,
e contudo mais não eram que o epítome
de toda a geração
e passavam de novo
com livros acabados de comprar
em qualquer antiquário
e com perfumes baratos
ou roupas de cores mortas
ou grandes romances de amor
por dentro das cabeças fantásticas,
fazendo nascer em mim a danada ânsia do poema.
E escrevia então um que começava «e de
súbito eis que aprendo
a grande hegemonia de todas as coisas»
e o poema doía-me
como se milhões de agulhas me florissem no corpo,
já o sol fracamente iluminava a cidade
e Edgware Road ficava deserta,
cruzada apenas por fantasmas
com ares de raparigas
que teriam decerto sido belas
e que não eram agora mais que
o epítome de toda a morte,
e eu ficava a vê-los passar,
perdendo-se
para Marylebone ou Harrowby,
repetindo para que a noite me ouvisse
que
de súbito,
eis que aprendo a grande hegemonia de todas as coisas.


quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

#15 - EM MARÇO (Luís Quintais)

Em Março chovia abundantemente. Eu atravessava o rio. O vento vergastava a chuva que me ensopava a roupa. Nada disso me faria desistir da quotidiana incursão. Havia um secreto encontro, uma dobra na passagem das horas, um infindável momento sobre as águas pluviosas de Março. Do que se tratava afinal? De uma simples árvore quebrada cujos ramos assomavam ligeiramente em furiosa perseguição. Na árvore eu via a beleza dos náufragos. E eu recebia-a. Insignificante dádiva do acaso. Generosa afluência meditando-me como os espelhos meditam. Fizesse eu da minha vida esta perene contemplação na tempestade, sempre em direcção aos altos céus de Março. Sob a forma da árvore indesistente, veria a verdade quando da verdade tivesse desistido. Um parêntesis no conformado desespero que me rói. Uma luminosa canção no epicentro da minha morte.


#14 - NÚRIA (António Barahona)

A lentamente bela bruxa cisne magro
A lentamente mate cor do pão de trigo
A lentamente Núria de navalha e ligas

Ah lentamente o corpo se compara ao cubo
e muda as asas quentes em arestas frias!
Mãos vestidas de roxo a festejar a tristeza
em Sexta-feira Santa d'oração medonha!

Ah lentamente a Espanha em procissão nas ruas,
cabelos degrenhados mais guitarras nuas!
Ah Núria, rosa-névoa, lâmina de pétalas
a recortar raízes dos meus olhos d'húmus!

Ah lentamente lentamente aponto e estico
o arco: assobia a flecha no teu flanco
e, de repente, no meu sangue flui um barco

Paço d'Arcos, 13.X.72


terça-feira, 22 de dezembro de 2015

#13 - DIA NEGRO (Francisco Costa)

Toda esta noite um vento de agonia
lançou gemidos pelo espaço fora;
e foi tão baço o despontar da aurora,
que não sei afinal se já é dia.

No chão, em cada poça de água fria
um tronco nu em lentos pingos chora,
e o vulto da montanha mal aflora
da névoa que nas cristas se desfia.

O vento apaziguou-se, mas a noite
deixou sinais do seu raivoso açoite
no dia negro, regelado, triste.

E só me aquece este álgido conforto:
é bom que tudo esteja quase morto
se além de nuvens pouco mais existe.


segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

#12 - "Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite" (Fernando Pessoa, enquanto Álvaro de Campos)

Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite,
Cada um a vida das linhas das vigias iluminadas
E cada um sabendo do outro só que há vida lá dentro e mais nada.
Navios que se afastam ponteados de luz na treva,
Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro
Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do mar.


sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

#10 - "Quando aqueles que chegavam" (Mário Cesariny)

Quando aqueles que chegavam
olhavam os que partiam
os que partiam choravam
os que ficavam sorriam


#9 - ARDE UM FULGOR EXTINTO (Rui Knopfli)

Arde um fulgor extinto
no longe da tarde agoniada.
Não me pesaria tanto
a caminhada se, em lugar do dia,
no seu extremo achasse a noite.

Exacta e concisa é a claridade.
Não mente à luz o que a noite
ilude. Terrível destino
o de quem é nocturno à luz solar.

Não vos ponha em cuidado,
porém, este meu penar:

são palavras e não sangram.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

#8 "EL SORDO"* (João Candeias)

na noite dos tormentos, nessa noite
em que os fantasmas deambulavam
pelo coração, olhou as paredes nuas
cegou-se de branca ausência, tamanho
cerco, e abriu janelas ao silêncio:
pintou terror, inferno, eternidade.
sonhara o sonho da razão
e o seu testamento escorreu lesto
pelos olhos da solidão.
aí, porque ouvira de novo o mundo
produziu monstros, como seria de esperar
do mundo


*(Goya)


#7 - ELEGIA BRANCA (António Barahona)

Cabelos brancos de minha mãe
Ausência branca de minha mãe

Corpo de rosa branca de minha mãe
Sangue de rosa vermelha de minha mãe

Luto carregado de lírios brancos por minha mãe
Lírios brancos carregados de luto por minha mãe

Lx. 10.V.92


quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

#6 - "Encontrou naquele janeiro trabalho" (João Miguel Fernandes Jorge)

Encontrou naquele janeiro trabalho
nas obras.
O seu melhor era o abrir da lancheira
o termo de alumínio canelado protegendo

o espelhado vidro
o café mantinha-se quente por muitas
horas.
As botas de velhos atacadores já com

buracos
as grossas meias de algodão a camisola
rota num dos braços o fato-macaco
a negra barba mal feita e os tijolos

erguendo a lenta parede dos dias.
O reboco o triturar a pedra
o cimento quase parte das mãos
a poeira doendo os olhos.

Sem ninguém, entre as fasquias andaimes e
caliça
sem espaço para legenda bebe café entre
o vigésimo terceiro e quarto andar.


#5 - INTANGÍVEL (Francisco Costa)

«Nuvem, sonho impalpável do desejo»
ANTERO.
Essa que eu amo e beijo e não existe,
embora exista em mim que a beijo e amo,
nunca há-de vir um dia em que eu a aviste,
nunca a voz hei-de ouvir-lhe quando a chamo.

Mas não me fugirá. Por mais que diste
quando eu a sua ausência já proclamo,
assim que me percebe fraco e triste
volta, e eu volto a sentir-me escravo e amo.

Sei que é uma visão, sei que a componho
eu mesmo, à semelhança do meu sonho,
dando-lhe a luz fictícia que ela emite.

Mas se à minha alma pode enfim bastar
essa alma ideal, -- o meu sedento olhar,
esse procura um corpo onde ela habite.


terça-feira, 15 de dezembro de 2015

#4 - MÃE (José Agostinho Baptista)

Eu sou aquela que os vê.
E caminho pelos seus caminhos e sou a
fogueira distante.
O tempo não me apaga.
Tenho os pontos cardeais e sou a bússola nas
suas mãos,
quando eles vão sobre as águas.
Sou os mapas, a constelação, o cruzeiro do sul,
o arado, o cão,
aquela que os guarda.
Sou o regaço, as belas plumas do meu regaço,
a imensa luz de amor que cai sobre a sua
penumbra,
sobre a sua loucura.
Sou a mãe da sua vida, da sua morte.
E vou com eles, espalhando as rosas tristes,
e os meus cabelos espalham sobre os seus
cabelos as raízes brancas.
Sou aquela que escreve quando eles dormem,
sou as palavras através do sono.
E adormeço com eles,
fechando as últimas portas.



#3 - COMBOIO DA LINHA DO NORTE (João Miguel Fernandes Jorge)

Olhava o vidro. Começou primeiro por
distinguir as vivas luzes da carruagem.
Depois em confusão esbatida
múltiplos rostos de quem ia sentado
noutros lugares. A noite
corria lá fora, o negro, o clarão
repentino de qualquer terra. Velho,
via agora nessa janela, vinte e muitos anos
atrás, o rosto que fora o seu, rapaz,
e é hoje esta nova face.
Inquieto, num corpo que era seu,
apertou como outrora
as mangas da camisola azul
em torno do pescoço e ficou quase
perdido na solitária, rápida, descida
da vida. Ao seu lado um amigo, antigo,
mas já tão depois desses anos juvenis,
cruzou os olhos com os dele
na superfície do vidro e da noite -- espelho
de tantos anos --, e perguntou-lhe «o
que foi?»
«Não foi nada. Coisas de velhice que
ocorrem quando nem sabemos.»

As luzes de Vila Franca já vão lá
fora e a ponte. Que longe os campos que
foram os do Mondego
onde ficou a lua
cheia de outubro. Há vinte e muitos anos
um cão ligava sempre este regresso ou
partida, esta viagem, a um prolongado uivo
quase de campo a campo, de vila a
vila. Hoje também o olhar do cão se
perdeu na insonora carruagem. Do tempo ficou
o espelho, vidraça erguida sobre a planura
passada de uma vida. Quantas vidas.



#2 - "Eras a primeira a levantar" (Fernando Jorge Fabião)

Para a avó Ângela


Eras a primeira a levantar
acendias o lume
moías o café
abrias as portadas

Novembro era o teu mês
e nas íntimas orações
procuravas o ouro iluminado
o refúgio onde as brasas ardiam junto ao coração

Os netos (breves relâmpagos)
atravessavam o lameiro
e pensativos adormeciam próximos das aves

Na varanda anunciavas a sabedoria do mundo
os ninhos, as cerejas, o pão pobre das palavras.

#1 - VELHA ENTREVADA (A. M. Pires Cabral)

Aquele que não conhece a doença
nem o progresso nem o desfecho dela
mal saberá que mal alumiado
poço de angústias é uma velha entrevada
disposta em cama de palha
que não lhe retarda -- antes fomenta --
a podridão,

na esperança e no terror
de que tudo acabe em breve.