domingo, 31 de janeiro de 2016

#88 - THE LAST ROSE... (Fausto Guedes Teixeira)

"Tu m'as dit un jour, en regardant la mer bleue
-- oh! aussi bleue que mes yeux: "Miss,
l'Amour (et tu as ri!) l'Amour est un
adorable mensonge... qui nous saisit."

Miss dos Olhos-Azuis, Tranças-Escuras,
Minha enigmática Senhora Inglesa,
Nos teus cabelos eu bebo loucuras,
Deitado nos teus olhos de turquesa!

Sorvo em teu corpo o aroma da Beleza
Sonâmbula de antigas Miniaturas:
E no teu colo esbelto, sem magreza,
O orvalho das ofélicas Alvuras.

Mulher única! em ti vivo o meu Sonho:
E é só de sonho a Alma que tu sondas
Com pesos d'astros no olhar risonho...

Na vida o Amor, e digo-to chorando,
É, como ouviste já -- olhos nas ondas --
Pretexto apenas pra sofrer... cantando!


sábado, 30 de janeiro de 2016

#87 - NOITE E DIA (Nuno Júdice)

E então a noite caiu, para que não se falasse
do cair da noite. A noite caiu tão fria como as
últimas noites que caíram, neste princípio de
Inverno, e ninguém pôs um colchão por baixo
dela para que a noite não se magoasse, ao cair.
A noite limitou-se a cair, e com ela caiu o céu
sem lua, com todas as estrelas do universo a
caírem com ela. Só os olhos não caíram, porque
para verem o céu e as estrelas que o enchiam
tiveram de se levantar. E foi preciso falar
do cair da noite para que os olhos tomassem
a direcção do céu, e descobrissem tudo o que
havia no céu sem lua. «Deixem cair a noite»,
disse alguém. E logo alguém pediu que o
dia se levantasse, como se uma coisa estivesse
ligada a outra. Então, o dia levantou-se da
noite que caiu; e a noite caiu sobre o dia
que se levantava, para que a sua queda fosse
amparada pelo colchão do dia, e as estrelas
tivessem onde pousar, à medida que caíam.




#86 - JANELAS DE ESTREMOZ (Sebastião da Gama)

Janela fechada,
cortina corrida...
Nem flor a perfuma,
nem moça a enfeita.
--: Ninguém se lhe assoma.
Janela tão triste,
nem ao Sol aberta...

Em toda a cidade
se repete a história
mil vezes; mil vezes,
se olhares a janela
ou desta ou daquela
casinha caiada,
a vês divorciada
do Sol e de tudo
que graça lhe dera.

Há vinte janelas
na casa da esquina?
-- Na rua de cá
dez estão fechadas;
outras dez, fechadas
na rua de lá.
Ah! tão retraídas!
Ah! tão agressivas!

Que pessoas vivas
foi que as condenaram?

Ó janelas mudas,
pobres prisioneiras!,
que pessoas vivas,
por que expiação,
vivem na prisão
em que vos meteram?

-- sem sol que as aquente...
sem flor que as alegre...

Janela cerrada,
cortina descida...
Mocinha escondida
por trás da janela
-- quanto mais não vale
a rosa encarnada
que a rosa amarela!...



sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

#85 - DO LAVRADOR (Mário de Oliveira)

de tudo plantou na vida
no exato tempo e na hora.

pegando firme na enxada
cavou fundo na memória.

primeiro quando de colo
plantara leite materno,

logo à frente plantaria
brinquedos, livro, caderno.

semeou depois nos brejos
grão de arroz e sua sala:

não tardou que a casa toda
fosse espalhada na vala.

mais tarde deitou seu sono
dentro de cascas de ervilha

cultivou tomate e soja
sem salitre e fantasia.

quarta-feira plantou fava
muitas quintas plantou milho,

pôs de adubo nas raízes
esterco e leite do filho.

curvado sobre si mesmo
plantou de tudo na vida:

mudas tenras e sementes
do que não teve e não tinha.

plantou coisas que o terreno
reduz a brisas, quimera,

quando o outono desce lento
quando explode a primavera.

#84 - "Antes das pontes os rios" (José Carlos González)

Antes das pontes os rios
Antes dos castelos águias
Que levantadas bem altas
São as deusas das escarpas.

Antes do fruto uma onda
De incenso de primavera
De cavalos debandados
Por anos de tanta espera.

Antes de tudo ser ouro
No alambique escondido.

Acordar de noite acesa.
Vertical hora ser vivo.
 
 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

#83 - ENDECHAS (Júlio Dantas)

Feliz de quem tem
Saudades dum bem.

Não as posso ter,
Que a saudade vem
De perder um bem,
Não dum mal perder;
Se tudo é sofrer,
Quem saudades tem
Se não teve um bem?

Tê-las cada dia
Tinha por vontade,
Porque a saudade
Faz-nos companhia:
Mas como a teria,
Se do bem nos vem
E eu não tivesse um bem!

Na vida mortal,
Se é tudo sofrer
Só poderei ter
Saudades do mal:
Ah, triste, afinal
Quem não tem ninguém,
Nem saudades tem!

#82- "Sòzinha no bosque" (Marquesa de Alorna)

Sòzinha no bosque
com meus pensamentos,
calei as saudades,
fiz trégua a tormentos.

Olhei para a lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a penar.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

#81 - VELA DO EXÍLIO (Gabriel Mariano)

Acendi hoje uma vela
de estearina na fina
mesinha onde escrevo.
Enquanto ela me ardia
da chama para os meus olhos
velhas lembranças seguiam.
E súbito sobre a parede
da velha casa onde moro
o mapa árido e breve
das ilhas do Caboverde.

Que vento não vem ou se agita
no barco em forma de vela
por dentro da casa fechada!
Que voz materna no écran
da ilha difusa difunde
meu nome em projecto?

Acendi hoje uma vela.
E enquanto me ela queimava
por sobre a mesa pessoas
vivas e mortas passavam.

Vela do exílio acendida
na noite de Moçambique:
pesado, inútil veleiro.
Vela do exílio, meu filho
com apenas um sopro apagas
a vela, o exílio não.

#80 - "o ramo seco partido" (António Gil)

o ramo seco partido/ em dois por meus pés refaz-se inteiro no estalido que ainda me acompanha.
 
 

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

#79 - INCÊNDIO (Cândido Guerreiro)

Daqui, desta falésia cor de lava,
Dum amarelo rútilo e sangrento,
Outrora debruçava-se um convento
Sobre a maré tumultuosa e brava...

E, à noite, quando no clamor do vento,
Ao largo, o temporal se anunciava,
E a voz das águas, soluçante e cava,
Punha um trovão nas furnas, agoirento,

Logo, piedosamente, cada monge
Suspendia uma lâmpada à janela,
E tangia a sineta para o coro...

E, no mar alto, o navegante, ao longe,
Via um farol luzir em cada cela,
E cada rocha a arder, em sangue e ouro...

#78 - ESMERALDA (B. Lopes)

Esmeraldas no heráldico diadema,
No lóbulo da orelha cor-de-rosa;
O colo -- arde na luz maravilhosa
De um tríplice colar da mesma gema.

No peito, aberto céu de alvura extrema,
Entre nuvens de tule vaporosa,
Verde constelação, na forma airosa
De principesca e recortada estema.

Agrilhoa-lhe o pulso um bracelete,
Glaucas faíscas desprendendo; ao cinto
Um florão de esmeraldas por colchete;

Nos dedos finos igual pedra escalda...
Mas deixam todo esse fulgor extinto
Os seus dois grandes olhos de esmeralda!

#77 - TRISTÍSSIMA CANÇÃO (Guilherme de Faria)

Nesta saudade em que vivo
Há um mistério que eu estranho:
É pesar-me o bem que tive
Mais do que os males que tenho.

E ainda é maior a amargura,
Lembrando que o bem passado
Foi menos do que mesquinho,
pois foi apenas sonhado!

Nasceu dos meus pensamentos
Altivos e namorados,
E fez, morrendo, a harmonia
Dos meus versos magoados...

E mesmo assim, que saudade
Eu tenho, de encanto estranho,
Que lembra o bem que eu não tive,
E é o maior mal dos que eu tenho!...


segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

#76 - CÃOZINHO (Sidónio Muralha)

Eu tenho um cão
muito pequenino
que me cabe na mão
e não é ladino...
Só se põe a correr
se o seu menino
lhe mexer...

Não come carne nem peixe
mesmo que o deixe...
Nem trinca chocolates e bolos
como os cães tolos...
Nem come sopinha
por mais que lha dê...

E não bebe leite
antes que se deite
na sua caminha...
E que coma açorda
ninguém se recorda...
Nem papa farinha...

E sabem porquê?
Ninguém adivinha?

-- é que o patetinha
é um cão de corda.

#75 - CANÇÃO (António de Navarro)

Ânfora, gomil
por que bebo fel e mel,
és tu,
amor meu;
e o filtro que adormeceu
num sonho d'ópio subtil,
desentranhado do núbil perfil
do teu corpo nu,
és inda tu,
amor meu!
O meu espelho de cristal,
emoldurado a marfim e prata
lavrada
por um artista gentil
como Cellini,
ficou quebrado,
ora vê lá tu,
ao reflectir a escarlata
dos teus lábios de rubi,
e a sombra maga do perfil alado
de graça do teu corpo esguio e nu,
e lindo!
Ora vê lá tu;
eu jamais tal vi,
e jamais vejo,
amor meu,
ânfora por que bebo
o mais amargo fel
do mais doce, do mais impossível desejo.
 
 

domingo, 24 de janeiro de 2016

#74 - A NOITE DESCE (Florbela Espanca)

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos castanhos, carinhosos,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite vai descendo, muda e calma...
Meu doce Amor, tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!


#73 - OS COELHINHOS (Odylo Costa, Filho)

Iam dois coelhinhos
andando apressados
para o céu -- com medo
de serem caçados.

E também com medo
de passarem fome.
Pois -- quando não dorme --
o coelhinho come.

E ainda tinha os filhos
que a coelha esperava...
O Céu era longe
e a fome era brava.

Jesus riu, com pena:
fez brotar da Lua
-- para eles -- florestas
de cenoura crua.


sábado, 23 de janeiro de 2016

#72 - UM CÃO LADRA (José Ilídio)

Um cão ladra, do lado de fora, à minha esquerda.
Desafia outras vozes, que agora distingo
mais humanas.
Está no cio, tem fome, apenas desconfia?
Pergunto-me o que seria do mundo
no instante em que todos os animais se calassem.
O que seria a paciência do mundo
sem esta estima e simpatia
sem esta gelatinosa harmonia.

Pergunto-me o que seria cair do sono todos os dias
sem esta batalha perdida.

#71 - AUSÊNCIA (José Craveirinha)

Mais feliz do que eu
nossa mútua ausência
já não te dói.


sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

#70 - "Dá a surpresa de ser" (Fernando Pessoa)

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter de haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?


quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

#69 - A QUEM LER (Frei Agostinho da Cruz)

Os versos que cantei importunado 
Da mocidade cega a quem seguia
Queimei (como vergonha me pedia)
Chorando por haver tão mal cantado.

Se nestes não ficar tão desculpado
Quanto o mais alto estilo requeria,
Não me podem negar a melhoria
Da mudança que fiz de um no outro estado.

Que vai que sejam bem, ou mal aceitos?
Pois os não escrevi para louvores
Humanos, pelo menos perigosos,

Senão para plantar em frios peitos
Desejos de colher divinas flores
À força de suspiros saudosos.


#68 - ROSAS SEM ESPINHOS (Afonso Lopes Vieira)

Esta rosinha de Assis,
sem espinhos, que eu de lá trouxe,
murcha, luminosa e doce,
no seu leve aroma diz:
-- Uma vez tentado foi

o Santo pla carne inquieta;
eis que o desejo lhe dói
numa agonia secreta.


E com a sede dos beijos
e dos ardentes carinhos,
arroja o corpo em desejos
às rosas cheias de espinhos!


Mas nós, quando então o temos
no abraço deste rosal,
os espinhos recolhemos
para lhe não fazer mal.







quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

#67 - NOITE DA RIA (Gastão Cruz)

Há formas indistintas que na noite da ria
se movem, silhuetas passando junto à água
um barco mal visível ao candeio
mas não, é só alguém que na vazante
anda na maré baixa transportando
um candeeiro que projecta raios
iguais aos das estrelas, sempre vivas
nas noites do verão; deixo de ver por vezes
essa estrela nas mãos de quem a usa para
paralisar os chocos na areia
sob a água de súbito avistados
rápido corre um barco despertando
a surda ondulação brevemente acabada
as aves só o canto as eleva da água
que durante algum tempo fica a bater nos barcos
sem outro som até que novamente os pios
no rumor do silêncio como sobre
uma sombra refazem o seu ritmo


#66 - AQUELA CANÇÃO FATAL (Rebelo de Bettencourt)

A horas mortas da noite,
Canta uma voz de mulher...
Não sei que drama adivinho
Na sua canção qualquer!

Quem canta assim, altas horas,
E acorda a rua tranquila?
Faz-me pena essa canção
E, entanto, gosto de ouvi-la!

É uma canção de amor,
Pobre, anónima, vulgar.
Mas é cheia de amargura:
Escuto-a e dá-me em chorar!

Recordo, então, o passado,
Que julgava morto em mim.
-- Coração, porque acordaste?
-- Ó dor, porque não tens fim?

-- Porque acordaste, passado,
Porque voltaste, afinal?
-- Maldita a hora em que ouvi
Aquela canção fatal!

Cala-te, voz doce e triste,
Deixa, por Deus, de cantar!
Dorme, dorme, coração,
Não tornes mais a acordar!


terça-feira, 19 de janeiro de 2016

#65 - CANÇÃO DO NU (Afonso Duarte)

Lindo
Mármore precioso que na alcova
Surpreendi dormindo!
E lindo
À luz dum fósforo, acendido a medo,
Despertou sorrindo.
E, lindo,
Dos olhos as meninas me saltaram
Para o nu que se estava descobrindo.

Linda!
Ficou-se ao desgasalho adormecida,
Ai vida,
Como ainda não vi coisa tão linda.

Linda,
Braços abertos em desnudo amplexo,
Seu corpo era uma púbere mendiga,
E ele é que estava pedindo,
Lindo,
O meu sexo.


#64 - PANORAMA (Guilherme Rocheteau)

Ao longe
na distância da manhã por vir,
na indecisão das camuflagens
e do rumor da guerra,
há agonias esbatidas no negro-fumo
da pólvora
dos homens que se batem.
Aquém, é a luta na retaguarda!

Às dores que nos campos de batalha
o golpe de misericórdia é dado
pela metralha,
correspondem nas fileiras de trás
ansiedades intérminas de almas
e lutas maiores...
Há evacuações despedidas, alarmes,
e notícias de comboios torpedeados.
Há a guerra dos nervos destrambelhados:
A guerra que ficou em nós
das notícias de guerra!
E há noites incalmas
de almas
que escrevem poemas
aos poemas dos nossos nervos em guerra.

E fica-nos a certeza
de que há um «front» em toda a gente.
A leste, ao sul, no espaço.
Em nós
há guerra. -- Aqui e além.


segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

#63 - "Tua frieza aumenta o meu desejo" (Eugénio de Castro)

Tua frieza aumenta o meu desejo:
Fecho os meus olhos para te esquecer,
Mas quanto mais procuro não te ver,
Quanto mais fecho os olhos mais te vejo.

Humildemente, atrás de ti rastejo,
Humildemente, sem te convencer,
Antes sentindo para mim crescer
Dos teus desdéns o frígido cortejo.

Sei que jamais hei-se possuir-te, sei
Que outro, feliz, ditoso como um rei,
Enlaçará teu virgem corpo em flor.

Meu coração no entanto não se cansa,
Amam metade os que amam com esp'rança,
Amar sem esp'rança é o verdadeiro amor.

Paris, 29 de Setembro de 1889


#62 - A MÃE ESTÁ SENTADA NO ALPENDRE (Jorge Reis-Sá)

à minha mãe, advérbio de estar

A mãe está sentada no alpendre a ver os advérbios passar:
serenamente, completamente, em paz. Como se a paz fosse
um advérbio de modo de estar, um orgulho. A mãe está sentada
no alpendre olhando em frente o campo, o cemitério, a igreja,

o padre celebrando a missa, celebrando os mortos. A mãe vê
a serenidade completa da paz atravessar-lhe o corpo e deitar-se
sob o mármore, sob as lápides, sob as flores e o ar que as esvoaça.

A mãe vê os advérbios passar, levando-lhe a paz. E uma vez
mais o padre, na igreja, dizendo: Senhor, dai-nos a paz.



domingo, 17 de janeiro de 2016

#61 - "Porque as mães sempre amaram tudo quanto" (Nunes Claro)

Porque as mães sempre amaram tudo quanto
Chora de baixo, ou pede algum perdão,
Quer seja a flor, que sofre em qualquer canto,
Seja a raiz, às cegas pelo chão.

E mortas -- não lhes morre ao pé um pranto,
Que elas não sequem com a sua mão,
-- Mesmo quietinhas, inda afagam tanto,
Mesmo geladas, que calor não dão!

Basta que à tarde, pequenino e estreito,
Um fio d'água passe por seu peito,
Logo julgam, de novo, os peitos cheios;

De modo que não há por todo o solo,
Miséria, que não durma no seu colo,
Desgraça, que não mame no seu seio!


sábado, 16 de janeiro de 2016

#60 - INQUIETAÇÃO (E. M. de Melo e Castro)

Como por uma fenda no tempo
diviso as sombras do que vem depois,
e tenho medo de dizer que entendo
o que está escrito para lá de agora.

E tenho medo como uma criança
que nem do que é agora sabe nada,
por isso me assusta esta esperança
de ver romper a madrugada.

Navegantes do céu e das estrelas,
dizei-me, ao menos uma vez,
não mais as canções belas,
mas apenas se o que será
é tão como o que vejo
pela fenda no espaço,
pela fenda do desejo...


sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

#59 - VIGÍLIA (Ronaldo Werneck)

o frio corta
em duas franjas
a paisagem
fiapos de azul
entrecortados
por serra
sono
cointreau
creme de café
cigarrilhas
o frio corta
a água queima
amor
tecendo o corpo creme
de café

inês, adriana, vera
revistas em quadrinhos
pôquer cama quer
historinhas, os meninos

murilo dorme
maurício recorta me re/cor
da eu pó menino tam
borilando a máquina

ulla corre
grita chispa
se mela remela
clama reclama
«perfuminho é meu
máquina é meu tinta
é meu é meu o mundo
é meu» vera
corre atrás o mundo
é de quem sabe amá-lo
por entre as frestas
e os fiapos de seu reino
profundo entre
cortado amor
tecido
serra
azul
sono
cointreau
creme de café
cigarrilhas


#58 - TRÊS PERSONAGENS (Virgínia Vitorino)

Em pleno inverno e no calor de Agosto,
vejo-os passar, na tarde loira ou baça...
Ela, tem distinção, tem certa graça,
certa elegância calma, de bom gosto.

Leva um livro amarelo. Bem disposto,
um galgo inglês, cheio de nervo e raça,
acompanha-a. Sei sempre a que horas passa,
grave, serena, esfíngica; -- ao Sol posto.

Quem é? Quem são?... Nem lhes conheço o nome!
O acaso, por acaso, destinou-me
a vê-los passar juntos, todos três...

Donde vêm? Onde vão? -- Quem o adivinha?
O que eu sei, é que passam à tardinha
ela, o livro amarelo, e o galgo inglês...


quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

#57 - À SOMBRA DAS ÁRVORES MILENARES (Manuel Alegre)

Passaram muitos anos mas não passou
o momento único irrepetível
o som abafado do estilhaço no corpo
o eco estridente do ricochete no metal
o cheiro da pólvora misturado com sangue e terra
o sabor da morte na última viagem de Portugal.

À sombra das árvores milenares ouvi tambores
ouvi o rugido do leão e o zumbido da bala
ouvi as vozes do mato e o silêncio mineral.
E ouvi um jipe que rolava na picada
um jipe sem sentido
na última viagem de Portugal.

Vi o fulgor das queimadas senti o cheiro do medo
o silvo da cobra cuspideira o deslizar da onça
as pacaças à noite como luzes de cidade
a ferida que não fecha o buraco na femural
no meio da selva escura em um lugar sem nome
na última viagem de Portugal.

Soberbo e frágil tempo
intensa vida à beira morte
amores de verão amores de guerra amores perdidos.
Uma ferida por dentro um tinir de cristal
passaram os anos o ser permanece.
Fiz a última viagem de Portugal.

16-9-2003


#56 - NÚMERO DOIS (João Camilo)

Beethoven, concerto número dois para piano.
Com um canivete corta-me devagar por dentro
a parte da alma mais encostada à carne.
O prazer que a Camões também doía e as palavras
de depois de inventá-lo. O sol que brilha e ilumina
o verde das primaveras que nesta se repetem. Enu-
merar: como quem coloca cada som depois do outro
e parte para a solidão. Uma lâmina pequena corta-me
por dentro das próprias veias no meu corpo
desconhecido as mais pequenas fibras. E sei que
existem e é delas que se extrai
a revolta com que vou nascendo para
ver-me de pé enquanto reaprendo
a não esquecer que um dia finalmente
tudo terá passado. E esta aventura
de estar aqui hoje há-de perder-se
no tempo que consome tudo e nos consome
a nós o uso de nós mesmos. Afeiçoarei o meu
corpo cada dia mais definitivamente à imagem
da pequena morte que nos chega que toca
os olhos na retina os ouvidos na membrana
do tímpano e passa a circular no sangue com a
embriaguez. Assassínio lento de mim mesmo,
Claudio Arrau pianista chileno vai
pontuando o tactear da lâmina
no meu corpo e eu sentado contemplo as cores
dos objectos à minha volta e vou dando pelo
espanto de assistir à passagem de mim
mesmo pelo que me rodeia.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

#55 - CDC/DCD (Ruy Belo)

A natureza em conjunto padece
e como o sofrimento muito a cansa
vinga-se em quem primeiro lhe aparece
e para ser maior essa vingança
já a futura morte transparece
no pequenino rosto da criança.


#54 - JÁ ERA QUASE NOITE (Isabel de Sá)

De novo ao calor da lareira
e ouvindo uma sonata de Beethoven
a memória impõe-me cenas
que não posso rasurar.

A perigosa linguagem do teu corpo,
a beleza das mãos sobre a página
de um livro onde aprendias
o ofício, a fascinante química
dos produtos que ajudam a viver.

Depois já era quase noite
e tarde de mais para recuar.
Tudo estava perdido; a nossa honra,
o dia de estudo, o conceito de amor.


terça-feira, 12 de janeiro de 2016

#53 - EMBARQUE (Jaime Ferreri)

Não sei se moço
se menino ainda
senti-me embarcado
rumo à morte, à morte...


Quis o destino que com ela me cruzasse
E com raiva duas vezes desdenhasse
Da vontade que mostrava em me apanhar


Não sei se de Deus
se dos Meus que foram
ecoou por África o grito que ouvi
a dizer à morte para me poupar


Não por ser bondoso
ou por ter virtude
mas porque era moço
um menino ainda
que contra vontade
tive d'embarcar...


#52 - A BORBOLETA (Odylo Costa, Filho)

De manhã bem cedo
uma borboleta
saiu do casulo.
Era parda e preta.

Foi beber ao açude.
Viu-se dentro da água.
E se achou tão feia
que morreu de mágoa.

Ela não sabia
-- boba! -- que Deus deu
para cada bicho
a cor que escolheu.

Um anjo a levou,
Deus ralhou com ela,
mas deu roupa nova
azul e amarela.


segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

#51 - DESENCANTO (Manuel Bandeira)

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

-- Eu faço versos como quem morre.

Teresópolis, 1912



#50 - "Meu amigu' e meu ben e meu amor," (João Airas de Santiago)

Meu amigu' e meu ben e meu amor,
disseron-vos que me viron falar
con outr' ome, por vos fazer pesar,
e por en rogu' eu a Nostro Senhor
que confonda quen vo-lo foi dizer
e vós, se o assi fostes creer,
e min, se end' eu fui merecedor.

E já vos disseron por mi que falei
con outr' ome, que vos non tiv' en ren,
e, se o fiz, nunca mi venha ben,
mais rog' a Deus sempr' e rogá-lo-ei
que confonda quen vo-lo diss' assi
e vós, se tan gran mentira de mi
crevestes, e min, se o eu cuidei.

Sei que vos disseron, per bõa fé,
que falei con outr' om' e non foi al
se non que vo-lo disserom por mal,
mais rogo a Deus, que no ceo se[e],
que confonda quen vos atal razon
diss' e vós, se a crevestes enton,
e que confonda min, se verdad' é.

E confonda quen á tan gran sabor
d'antre min e vós meter desamor,
ca maior amor no mundo [non] é.


domingo, 10 de janeiro de 2016

#49 - PELAS LANDES, À NOITE (Eugénio de Castro)

Pelas landes e pelas dunas
Andam os magros como pregos,
Os lobos magros como pregos,
Pelas landes e pelas dunas.

Olhos de fósforo, esfaimados,
Numa pavorosa alcateia,
Andam, andam buscando ceia,
Olhos de fósforo, esfaimados.

Nas landes grandes, junto às dunas,
Um menino perdido anda,
Anda perdido a chorar anda,
Nas landes, junto às brunas dunas.

Senhor Deus de Misericórdia,
Protegei o róseo menino,
Protegei o róseo menino,
Senhor Deus de Misericórdia.

Porque nas landes e nas dunas
Andam os magros como pregos,
Os lobos magros como pregos,
Nas grandes landes e nas dunas.


sábado, 9 de janeiro de 2016

#48 - "Amanhece" (Daniel Maia-Pinto Rodrigues)

Amanhece
e no espreguiçar dos olhos
absorvo a tontura do novo dia

Ao sair do quarto
atravesso o branco sujo da manhã
tropeço na claridade da primavera
e vou tomar café com muito açúcar

Levo um pastel de Tentúgal para a varanda
e mastigo-o ouvindo as harpas da cidade

E quanto tu chegas de roupão
bebendo o teu cacau
explico-te num gesto amplo de incertezas
o horizonte com barcos


#47 - IMBONDEIROS (Maria Augusta Silva)

Andamos com um arco e uma flor
à roda
dos imbondeiros. Descalços
porque
queremos estar descalços.
Sobe
ao arco a alegria com muitas
cores
dependuradas nos nossos cabelos.
Nada
disto se dissolve em metafísica.
Temos
um arco e uma flor. E isso é que é
divino


sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

#46 - "límpidas de dor, velhas" (Valter Hugo Mãe)

límpidas de dor, velhas
deles, matam-nos assim
que adormecem, servem-se do
machado e não os deixam
muito tempo no sono, não
vão sonhar que agarram a arma
antes que elas o façam, e afirmam
que os lamentam, esmagados,
elas aos gritos.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

#45 - ROSAS E CANTIGAS (Afonso Duarte)

Eu hei-de despedir-me desta lida,
Rosas? -- Árvores! hei-de abrir-vos covas
E deixar-vos ainda quando novas?
Eu posso lá morrer, terra florida!

A palavra de adeus é a mais sentida
Deste meu coração cheio de trovas...
Só bens me dê o céu! eu tenho provas
Que não há bem que pague o desta vida.

E os cravos, manjerico, e limonete,
Oh! que perfume dão às raparigas!
Que lindos são nos seios do corpete!

Como és, nuvem dos céus, água do mar,
Flores que eu trato, rosas e cantigas,
Cá, do outro mundo, me fareis voltar.


#44 - CANTIGA: PARTINDO-SE (João Roiz de Castelo Branco)

Senhora, partem tão tristes
Meus olhos por vós, meu bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
Tão doentes da partida,
Tão cansados, tão chorosos,
Da morte mais desejosos
Cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
Tão fora de esperar bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

#43 - LUSITÂNIA (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Os que avançam de frente para o mar
E nele enterram como uma aguda faca
A proa negra dos seus barcos
Vivem de pouco pão e de luar.


quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

#42 O SEGREDO DA MATÉRIA (Rosa Alice Branco)

Subo ao sótão e tenho seis anos
pelas escadas que rangem
sob os pés que voam em segredo,
rangem como a porta a abrir
para a luz filtrada dos pavores da infância
onde espero um pouco
por tudo o que me espera desde a eternidade.
Tenho sete anos e a cinza confunde-se com a luz
depositada no tempo. As arcas dão a ver o outro lado
do mundo espalhado pelo chão à minha volta.
Não são objectos mas o próprio mistério da existência
que vai passando pelas minhas mãos
quando tenho oito anos, quando tenho agora
o segredo de uma porta que abre para a casa.
Percorro os caminhos da mesa, da cama, da lareira,
as raízes da casa são o sótão
onde a luz toca nas mãos o infinito.
Subo pelos olhos espantados
e espero ainda pela aurora que me aguarda
aproximando-se lentamente do seu pó.