sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

#258 - "Retirados à altura da sua idade, ouviam." (Fernando Echevarría)

Retirados à altura da sua idade, ouviam.
Mas ouviam frequências onde o rumor do mundo,
esbatido, somente amanhecia
azul visível, atento timbre e pulso.
Ouviam tudo quanto a si se ouvia
no concerto de tudo.
E nessa solidão de intensa companhia
em que a altura da idade era um azul profundo.


quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

#257 - VOLÚPIA (Florbela Espanca)

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade…
A nuvem que arrastou o vento norte…
-- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço…
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças…




sábado, 24 de dezembro de 2016

#256 - NATAL À BEIRA-RIO (David Mourão-Ferreira)

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?



sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

#255 - NATAL CHIQUE (Vitorino Nemésio)

Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na minha pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado...
Só esse pobre me pareceu Cristo.



#254 QUATRO (Matilde Rosa Araújo)

(Em memória do grande Amigo
Joaquim Manuel Maia de Jesus)

A rosa vermelha última a que te prendeste
A rosa vermelha nas mãos duma menina
Aquela maçã que tu deste e não comeste
E nestes quatro versos está a tua sina

Partiu-se a lua num quarto desesperado
E entrou louca pelos quatro vidros do hospital
Quatro homens levaram teu corpo gelado
E a menina escondeu duas mãos no avental

Ali na encruzilhada de todos os ventos
Tristes contando às ondas tão triste nova
Braços de pinheiros bravos foram lamentos
À rosa dos ventos lendo a verdade toda

Só aquela cadela que corria ao luar
Anda a uivar pelos caminhos a tua morte
São quatro patas pelo chão a caminhar
Arrastando a raiva humana da tua sorte.



sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

#253 - CANÇÃO DUMA SOMBRA (Teixeira de Pascoais)

Ah, se não fosse a névoa da manhã
E a velhinha, para ouvir a voz das cousas,
                    Eu não era o que sou.

Se não fosse esta fonte, que chorava,
E como nós cantava e que secou...
E este sol que eu comungo de joelhos,
                     Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse este luar, que chama
Os espectros à vida e se inflitrou,
Como fluido mágico, em meu ser,
                    Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse o vento, que embalou
Meu coração e as nuvens, nos seus braços,
                    Eu não era o que sou.

Sem esta terra funda e fundo rio,
Que ergue as asas e sobe, em claro voo;
Sem estes ermos montes e arvoredos,
                    Eu não era o que sou.



terça-feira, 13 de dezembro de 2016

#252 - TÚMULO DO POETA DESCONHECIDO (Carlos Ávila)

uma brochura
que mal se sustenta de pé
na biblioteca pública
de uma cidadezinha qualquer

as páginas amareladas
de uma antologia
com trezentos e tantos
tantos tantos "poetas"

um título
perdido
(muito cedo, muito cedo)
nas prateleiras de um sebo

apenas um nome
(nowhere man)
na babilônica
lista telefônica

numa obscura
repartição pública
(beneficência da língua portuguesa)
sem cura

um bando bêbado
no fundo do bar
olhando pro nada
e pensando que é o mar

no tumulto da vida -- o túmulo
requiescat in pace
& não volte jamais



segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

#251 - DESLUMBRAMENTOS (Cesário Verde)

Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sòzinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum ragalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva com a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos -- as rainhas!



sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

#250 - CLAMAVI AD TE (Carlos Queirós)

Apenas hoje! Apenas uma vez,
Fala de modo que a verdade seja
Tão clara e transparente, que eu a veja
Num cristal da mais pura limpidez!

Talvez seja loucura o que deseja
A minha insaciedade. Sim, talvez...
Que tu fosses, falando, a outra que és,
Com a alma nos lábios, quando beija.

Mal empregado privilégio, a fala,
Que traduz a verdade em que pensamos,
As palavras gastando em ocultá-la!

Que seja assim quando se odeia, vamos...
Mas para quê se dissimula ou cala,
Quando tudo nos diz que nos amamos?!



terça-feira, 6 de dezembro de 2016

#249 - ARRÁBIDA (Júlio Evangelista)

O vento bate na face


De quem sobe àquela serra.


Vento que por ali erra


Bate na face a quem passe


Perto do cimo da serra.




Bate forte, o vento forte,


Chicoteando com força,


Ao vir das bandas do norte,


Chicoteando com força,


Dono da serra e da morte.




Consente, vento, que eu passe


Pelo alto desta serra


E não me batas na face


Porque, se mais não bastasse,


Basta eu ser da tua terra.




Não grites assim tão forte


Nem te exaltes contra mim,


Porque eu também sou do norte:


Donde tu vens, também vim,


Vento que ventas do norte.




Venho ver frei Agostinho;


Trazer ao Frade saudades


Das verdes terras do Minho:


Venho falar de saudades


Com o Poeta Agostinho.




Morreu o Sebastião


Que lhe falava, falava,


Das coisas do coração.


E o frade está desolado


Era quase como um irmão!...




Ele mora ali em cima


E a conversa não demora.


Venho falar-lhe do Lima,


Venho falar-lhe de Ponte,


E outras coisas que ele ignora.




Regresso depois ao Minho,


Vento que sopras do norte


E guardas Frei Agostinho.


Se um dia quiser recados,


Traze-los tu, vento norte?






Arrábida, 8/3/53




domingo, 4 de dezembro de 2016

#248 - CHAMARAM-ME CIGANO (José Afonso)

Chamaram-me um dia
Cigano e maltês
Menino, não és boa rês
Abri uma cova
Na terra mais funda
Fiz dela
A minha sepultura
Entrei numa gruta
Matei um tritão
Mas tive
O diabo na mão

Havia um comboio
Já pronto a largar
E vi
O diabo a tentar
Pedi-lhe um cruzado
Fiquei logo ali
Num leito
De penas dormi
Puseram-me a ferros
Soltaram-me o cão
Mas tive o diabo na mão

Voltei de charola
De cilha e arnez
Amigo, vem cá
Outra vez
Subi uma escada
Ganhei dinheirama
Senhor D. Fulano Marquês
Perdi na roleta
Ganhei no gamão
Mas tive
O diabo na mão

Ao dar uma volta
Caí do lancil
E veio
O diabo a ganir
Nadavam piranhas
Na lagoa escura
Tamanhas
Que tal nunca vi
Limpei a viseira
Peguei no arpão
Mas tive
O diabo na mão

















quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

#247 - AQUI (Carlos Ávila)

continuar aqui
apesar de

roendo pedra
comendo amor

(montanhas?
são tão estranhas

acima -- impassível
l'azur l'azur l'azur...

na única cidade
com abóbada celeste

abaixo -- impossível
vida sem saída

labirintos: look around
the lonely people)

continuar aqui
à beira de

comendo pedra
roendo amor