terça-feira, 12 de maio de 2020

#306 - O CANTO E AS ARMAS (Manuel Alegre)

Canto as armas e os homens
as pedras e os metais
e as mãos que transformando
se transformam. Eu canto
o remo e a foice. Os símbolos.
Canto o martelo e a pena.
Meu sangue é uma guitarra
tangida pelo Tempo.


Canto as armas e as mãos.
E as palavras que foram
areias tempestades
minutos. E o amor.
E também a memória
do cravo e da canela.
E também a quentura
doutras mãos: terras e astros.
E também a tristeza
e a festa. O sangue e as lágrimas.
O vinho: puro arder.
E também a viagem:
navegação lavoura
indústria -- esse combate.
Procurai-me nas armas
no sílex no barro.
Pedra: meu nome é esse.
E escreve-se no vento.


Canto o carvão e as cinzas
as gazelas e os peixes
na fogueira contínua
das cavernas. E a pele
do tigre sobre a pele
do homem. Eis o meu rosto:
está gravado na rocha.
Procurai-me no fóssil
e no carvão. Meu rosto
é cinza e primavera.


Canto as armas e os homens,
Porque a Tribo me disse:
tu guardarás o fogo.
E por armas me deu
o bronze das palavras.


Meu nome é flecha. E perde-se
no pássaro. Começa
meu canto onde começa
a construção. Pastores
do tempo são meus dedos.
Caçadores de coisas
impossíveis. Eu canto
os dedos que transformam
e se transformam. Canto
as marítimas mãos
de Magalhães. As mãos
voadoras de Gagárine.


Procurai-me no mar
procurai-me no espaço.
Estou no centro da terra.
Meu nome é cinza. E espalha-se
no vento. Sou adubo
fermentação floresta
e cintilo nas armas.


Canto as armas e o Tempo.
As minhas armas o
meu tempo. E desarmado
pergunto à flor pergunto
ao vento: vistes lá
o meu país? E o meu
país está nas palavras.
Porque a Tribo me disse:
tu guardarás o fogo.
E por armas me deu
esta espada este canto.





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