terça-feira, 31 de janeiro de 2017

#268 - HUMILHAÇÕES (Cesário Verde)

De todo o coração -- a Silva Pinto
 
Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Job,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
     Todas as noites, ignorado e só.
 
Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos.
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos,
     Eu analiso as peças no cartaz.
 
Na representação dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
     Saltou soberba o estribo do coupé.
 
Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
     Fiquei batendo os dentes de terror.
 
Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia
De vê-la aproximar, sentado na plateia,
     De tê-la num binóculo mordaz!
 
Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
-- Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
        E ouviam-se cá fora as ovações.
 
Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
        Nos grandes espectáculos do Som.
 
Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir, direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
        Que o chão se abrisse para me abater.
 
Saí; mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
        Cresci com raiva contra o militar.
 
De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
-- Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...


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