segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

#293 - BOCAGE (Pedro Tamen)

Já não sou. Já não serei
se fui. Agora à cova
além dos ossos e caroços
muito mais descerá.
O verso, o riso, o vinho,
a mão ladina sobre a carne morna,
tantas coisas sentidas, ressentidas,
intenções, bolandas, entreactos,
entradas por saídas, choros finos:
muito mais descerá.
 
Não sou, é certo, e não serei,
mas no descer de tudo
já nem fui.






quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

#292 - EPIGRAMA (Carlos Queirós)

O cego deu à manivela
Da velha e triste pianola,
Que era a alegria da vila;
Mas já ninguém vem à janela.
-- Pois, vindo, davam-lhe esmola...
E, ocultos, podem ouvi-la.


segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

#291 - VEJAM BEM (José Afonso)

Vejam bem
Que não há
Só gaivotas
Em terra
Quando um homem
Se põe
A pensar

Quem lá vem
Dorme à noite
Ao relento
Na areia
Dorme à noite
Ao relento do mar

E se houver
Uma praça
De gente
Madura
E uma estátua
De febre
A arder

Anda alguém
Pela noite
De breu
À procura
E não há
Quem lhe queira
Valer

Vejam bem
Daquele homem
A fraca
Figura
Desbravando
Os caminhos
Do pão

E se houver
Uma praça
De gente
Madura
Ninguém vem
Levantá-lo
Do chão

Vejam bem
Que não há
Só gaivotas
Em terra
Quando um homem
Se põe
A pensar

















quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

#290 - OUVE, MEU CÃO (Maximiano Gonçalves)

Ouve, meu cão,
Que há tanto tempo vejo
No teu certo dia a dia:
Uma coisa queria saber,
Tão fundo que pensasse
Que a sabia.
Como foi conseguido
Seres assim tão perfeito?
Como podes não falhar,
Mesmo a gente falha e sem jeito
E a gente que falta tanto,
Não faltar?



quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

#289 - "no ano em que eu era comido pelo escorbuto" (Fernando Assis Pacheco)

no ano em que eu era comido pelo escorbuto
chegavam as tuas enviadas com limões de oiro

tu própria ias dessedentando a boca da viola
para salvar-me o canto

eis a ditosa amada, escrevi então
minha pátria



quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

#288 - TRADIÇÃO (Rui Knopfli)

Palavras, substância, ideia,
persistentes e danosos vermes
da memória, em várias chamas
variamente ardendo, com sôfrega
raiva vos devoro.

                          Em vós
mudado, de vós moldarei,
porque minhas, palavras
outras e únicas.
                          Louco

ou iluminado, a baba
incandescente tombar-me-á
incólume nos lábios febris,
ouro e sangue, sangue e ouro.
Artífice elusivo do sonho,

cinábrio do torvelinho e da noite,
tal poder pode mais em mim
do que eu poder posso.
Instrumento, embora, querer
tê-lo-ei querido.

                            Mas querer
quis mais que eu.
                            E o que terei
querido, quer em mim
e seu poder é cumpri-lo.