terça-feira, 6 de julho de 2021

#359 - 'GADANHEIRO' (1945), DE JÚLIO POMAR (Manuel Matos Nunes)

Lança o brilho da sua lâmina

ao manto plúmbeo do céu.

Deus, escondido e indiferente,

dorme entre as nuvens roxas

da eternidade.


A terra a quem a trabalha! --

grita. E um anjo caído

vem acender línguas de fogo

no ouro da seara.










Júlio Pomar, Gadanheiro (1945) - MNAC



quarta-feira, 23 de junho de 2021

#358 - PRISÃO (Antero Abreu)

 Da flor o vulto

Da pedra o sumo

Do sonho o húmus

Do sono o fumo


Da mão o nervo

Do gesto o peso

Do olhar o medo

Do sol o prumo


Do riso o gume

Da força o selo

Da morte o gelo

Da paz o resto

21/10/980




terça-feira, 15 de junho de 2021

#357 - "Um caminho roto" (Arnaldo Santos)

 Um caminho roto

Sinuoso

Com margens de cubatas.


Pelo seu chão caminhavam

Seus caminhantes

Cansados

Mansamente

Escondendo-se no crepúsculo de uma esquina.


Escondiam-se do mundo

E de si próprios.

   Luanda -- dezembro -- 956






segunda-feira, 7 de junho de 2021

#356. MADAME BUTTERFLY, VELHA (Pedro Tamen)

 Engano: não, não me matei,

suguei
a vida que outros deram.

Gueixa nasci e aqui estou de gueixa,
borboleta que fui, borboleta que sou,
mosca, ah, sim, mosca,
mas de manteiga.

E envelheço porque não morri.
Envelheço? Não pode envelhecer
quem sempre foi assim.
Dizem-me velha? Olhem-me as pinturas:
todos os dias chegam barcos,
barcos, marinheiros,
todos os dias chegam.



domingo, 6 de junho de 2021

#355 - AS COISAS (Carlos Daniel)

 Se as quiséssemos ver

-- as coisas --

Como elas são

Acabariam as angústias.

O mar, por exemplo

-- Água num copo --

Ou uma árvore

-- Sem bosque --

E poderíamos passar toda a vida

Sem lhes procurar a razão

Ou um espírito

Que em nada lhes falta.

Faríamos de nós mar

Água

Árvore

Bosque

E varreríamos as nossas expectativas

A presunção do entendimento

-- O desespero também --

E então sim

Poderíamos ouvir-nos em silêncio

Sem a angústia

De não termos sido os eleitos




terça-feira, 1 de junho de 2021

#354 - LIVRO DOS TEMAS (José de Matos-Cruz)

 E, não esqueças os teus monstros...

       Chamo-te no silêncio velocíssimo que me grassa o espírito, nestas asas adornadas de húmida expectativa, no voo raso das aves

     que amparámos com as mãos, marinhas aves, tolhidos de ternura,

     chamo-te insofismável

     no frémito iridescente que percorre no meu corpo, seco e perturbante -- frémito primeiro, histórica enunciação, precisa.





segunda-feira, 31 de maio de 2021

#353 - CONTIGO DURMO MAIS (Cristóvão de Aguiar)

contigo durmo mais outro cansaço

coalhado da lonjura que me dói

trouxe-te sempre ao colo num abraço

não paraste o moinho mói-que-mói.


jungido à manjedoura pelo baraço

o tempo remastigo rói-que-rói

aquém de mim fiquei só mais um passo

e desfazia a corda atada ao boi.


apontaste-me o longe mas fazias

outrora alguns sinais de namorar

bem rente ao paredão das ventanias.


por amor de ti traguei milhas de mar

em naufrágios de tantas travessias

-- está a sede ainda por matar.




domingo, 30 de maio de 2021

#352 - "'A uma tia que enlouqueceu:'" (Luís-Cláudio Ribeiro)

 Toco-lhe na cabeça branca

sabendo que sem nomes ficou.

Persiste nos seus olhos sós

um rastro de melancolia

e nos lábios à espreita uma palavra.


Enquanto posso,

seguro-lhe na mão uma carícia

não vá o mundo tecer

nova luz e outro dia




segunda-feira, 26 de abril de 2021

#351 - OLHAR (Sofia Moraes)

 cabe a cada coisa seu lugar

e a linha que traça no ar

e merecer um olhar de criança

longe do hábito de

chamar-lhe verde

azul terno vermelho maduro

triste alegre indiferente

cabe a cada inverno

ser estação sem

a clemência de uma queixa

lá por ser difícil dizer a um olhar

tu vai ser eterno

e o vento procurar a fúria

nas folhas que não estão