quarta-feira, 27 de maio de 2020

#316 - O SAPO (Afonso Lopes Vieira)

Não há jardineiro assim,
não há hortelão melhor
para uma horta ou jardim,
para os tratar com amor.


É o guarda das flores belas,
da horta mais do pomar;
e enquanto brilham estrelas,
lá anda ele a rondar…


Que faz ele? Anda a caçar
os bichos destruidores
que adoecem o pomar
e fazem triste as flores.


Por isso, ficam zangadas
as flores, se se faz mal
a quem as traz tão guardadas
com seu cuidado leal.


E ele guarda as flores belas,
a horta mais o pomar;
brilham no céu as estrelas,
e ele ronda, a trabalhar…


E ao pobre sapo, que é cheio
de amor pela terra amiga,
dizem-lhe muitos que é feio
e há quem o mate e persiga!


Mas as flores ficam zangadas,
choram, e dizem por fim:
-- «Então ele traz-nos guardadas,
e depois pagam-lhe assim?»


E vendo, à noite, passar
o sapo cheio de medo,
as flores, para o consolar,
chamam-lhe lindo, em segredo…












(Raul Lino)

segunda-feira, 25 de maio de 2020

#315 - FOZ DO ARELHO ou PRIMEIRO POEMA DO PESCADOR (Manuel Alegre)

Este é apenas um pequeno lugar do mundo
um pequeno lugar onde à noite cintilam luzes
são os barcos que deitam redes junto à costa
ou talvez os pescadores de robalos com suas lanternas
suas pontas de cigarro e suas amostras fluorescentes
talvez o Farol de Peniche com seu código de sinais
ou a estrela cadente que deixa um rastro
e nada mais.

Um pequeno lugar onde Camilo Pessanha voltava sempre
talvez pelo sol e as espadas frias
talvez pelas orquestras e os vendavais
ou apenas os restos sobre a praia
«pedrinhas conchas pedacinhos d'osso»
e nada mais.

Um pequeno lugar onde se pode ouvir a música
o vento o mar as conjunções astrais
um pequeno lugar do mundo
onde à noite se sabe
que tudo é como as luzes que cintilam
um breve instante
e nada mais.

Foz do Arelho, 8.8.96


domingo, 24 de maio de 2020

#314 - ONDA VAI ONDA VEM (Antero Abreu)

Forma-se a onda e depois outra e outra
E enquanto se desfazem outras vêm
O mar é sempre o mesmo e no entanto
Em onda se divide
E nelas se une.

O mar somos nós todos
O mundo
Em água condensado.

Onda vai onda vem
A fina areia e o mar vai revolvendo.

Desponta ao longe uma restinga.

17/10/977


sábado, 23 de maio de 2020

#313 - O BAILADOR DE FANDANGO (Pedro Homem de Melo)

Sua canção fora a Gota.
Sua dança fora o vira.
Chamavam-lhe: «o fandangueiro».
Mas o seu nome verdadeiro
Quando bailava, bailava,
Não era nome de cravo,
Nem era nome de rosa.
-- Era o de flor, misteriosa,
Que se esfolhava, esfolhava...
E havia um cristal na vista
E havia um cristal no ar
Quando aquele fandanguista
Se demorava a bailar!
E havia um cristal no vento
E havia um cristal no mar!
E havia no pensamento
Uma flor por esfolhar...
Fandangueiro! Fandangueiro!
(Nem sei que nome lhe dar...)
Tinham seus braços erguidos
Nem sei que ignotos sentidos...
-- Jeitos de asa pelo ar...
Quando bailava, bailava,
Não era folha de cravo
Nem era folha de rosa.
Era uma flor, misteriosa,
Quando se esfolhava, esfolhava...



quinta-feira, 21 de maio de 2020

#312 - ARTE POÉTICA (Vergílio Alberto Vieira)

Nenhum brilho (como esse que a luz recorta a frio,
e incendeia a cor) sempre foi ouro de apagadas luas.
Esta agulha de pedra, que o astro equilibra a prumo
sobre a mão, de fogo cósmico estremece.
O unicórnio branco o sabe, e eu.



terça-feira, 19 de maio de 2020

#311 - DESCENDÊNCIA (Eucanaã Ferraz)

Compreendo que o homem tenha coroado
morta a rainha que lhe mataram.
Era preciso sempre coroá-la.


Julgo razoável a vingança esmerando-se
à perfeita aberração do amor além da morte
e coroá-lo.


Entendo o gosto do amante
ao ver arrancados os corações dos que lhe mataram
a amada. Penso que foi justo e nobre.


Beijei com gosto a mão fria.
Nossos amores assassinados
devíamos todos coroar em rainha.



segunda-feira, 18 de maio de 2020

#310 - DO POETA AO SEU POVO (Manuel Alegre)

Darei ao povo o meu poema.
Eu lhe darei a flor e a pedra
cada minuto cada tristeza
e uma azagaia contra a dura sorte
e a minha raiva acesa em cada noite. Eu lhe darei
a flor e a pedra. E a minha vida. E a minha morte.


E o direito do povo me julgar
e o direito do povo me dizer:
tu dormiste de mais. Cantaste pouco amigo.
Há muita coisa que não sabes
E eu lhe darei meu sono e eu lhe darei meu sonho.
E eu dou ao povo tudo quanto sei.


E nunca sei se tudo quanto dou é tudo.
Porque parei por vezes à beira dum poço
havia raparigas e cântaros e seios
e então bebi. Era Setembro e não pensei
que os homens não cantavam lá nas verdes vinhas
da minha pátria onde a vindima é triste.


Porque dormi de mais algumas vezes.
Outras ainda presumi e disse:
vou acordar o povo. Eu sou o poeta.
E não bati a cada porta e não deixei
em cada casa a taça da canção.
Porque não disse ao povo: sou apenas um homem.


Porque menti e dei aos outros
uma alegria feira à pressa       uma alegria triste.
Porque não disse os meus defeitos e nem sempre
eu disse ao povo duramente os meus defeitos
que também estão em mim. Porque me orgulho tanto
dos defeitos em mim do povo que não tem os meus.


Porque não disse ao povo: sou apenas um homem
talvez não preste é certo mas é tudo.
E nem sempre fiz tudo para ser mais do que sou.
Porque lhe disse: eis o poema eis o meu sangue.
E pensei que era tanto e pensei que era tudo
quando é tão pouco o sangue dum poeta.



sábado, 16 de maio de 2020

#309 - LIMIAR (João de Barros)

Àqueles que sabem
e querem amar o
Futuro:

Foge o Presente, foge às mãos sequiosas
De cingi-lo, apertá-lo ao coração,
E as horas correm, tão vertiginosas,
Que mal as vemos, no seu turbilhão...

Umas dão sonho, noutras nascem rosas.
Sonhos e rosas -- porque nascerão?...
-- Como a volúpia incerta que tu gozas
Deixam saudades só, meu coração!

E é sempre esta saudade, esta agonia
De não viver a vida fugidia,
De ver fugir desejo, amor, verdade...

-- Mas o Futuro vela... E, fielmente,
Colhe as horas mais belas do Presente
E delas tece a nossa eternidade!




quinta-feira, 14 de maio de 2020

#308 - RECADO (QUASE PROSAICO) AO QUE CHEGOU DE CEUTA A MANQUEJAR DUM OLHO (Vergílio Alberto Vieira)

     Tão logo os bronzes do império (que, em nos enriquecendo, mais pobre nos tornaram) aquém dos continentes emudeceram na razão, e outra é já a nossa indústria, camarada.
     Não que outro seja o rude tímpano de outrora, não que outra seja a gente surda:
     O verbo a mesma lira destempera.
     E cansa a mesma pátria: metida / No gosto da cobiça e na rudeza / De uma austera, apagada e vil tristeza*.
     Destarte, olha que, poragora, de baldias esperanças ainda nos mantemos!
     Os que ao reino tanta riqueza tiraram p'ra seu uso, do teu saber outro saber fizeram; e das artes, ousado bem com que, ante o favor da musa, nos cantaste, o coração e a alma ratearam.
     Porisso, mais enfastia o que sobeja!*
     Muito cumprimos por preço bem mesquinho, nós que, pelas armas, ainda há pouco, em áfricas buscados, errávamos de nosso fundamento.
     O que da espada é brilho em nada nos protege.
     O que pela pena é ouro desta idade, em pouco ou nada, do culto nos corrige.
     Mas por quanto erros adoece a pátria tua amada, há-de este povo porfiar um dia desperto para a luz de um bem regido e sábio entendimento.

 











* Luís de Camões
e Sá de Miranda 

quarta-feira, 13 de maio de 2020

#307 - BUSCANDO A CRISTO (Gregório de Matos)

A vós correndo vou, braços sagrados,
nessa Cruz sacrossanta descobertos
que, para receber-me, estais abertos,
e, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados
de tanto sangue e lágrimas cobertos,
pois, para perdoar-me, estais despertos,
e, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,
a vós, sangue vertido, para ungir-me,
a vós, cabeça baixa, por chamar-me.

A vós, lado patente, quero unir-me,
a vós, cravos preciosos, quero atar-me,
para ficar unido, atado e firme.


terça-feira, 12 de maio de 2020

#306 - O CANTO E AS ARMAS (Manuel Alegre)

Canto as armas e os homens
as pedras e os metais
e as mãos que transformando
se transformam. Eu canto
o remo e a foice. Os símbolos.
Canto o martelo e a pena.
Meu sangue é uma guitarra
tangida pelo Tempo.


Canto as armas e as mãos.
E as palavras que foram
areias tempestades
minutos. E o amor.
E também a memória
do cravo e da canela.
E também a quentura
doutras mãos: terras e astros.
E também a tristeza
e a festa. O sangue e as lágrimas.
O vinho: puro arder.
E também a viagem:
navegação lavoura
indústria -- esse combate.
Procurai-me nas armas
no sílex no barro.
Pedra: meu nome é esse.
E escreve-se no vento.


Canto o carvão e as cinzas
as gazelas e os peixes
na fogueira contínua
das cavernas. E a pele
do tigre sobre a pele
do homem. Eis o meu rosto:
está gravado na rocha.
Procurai-me no fóssil
e no carvão. Meu rosto
é cinza e primavera.


Canto as armas e os homens,
Porque a Tribo me disse:
tu guardarás o fogo.
E por armas me deu
o bronze das palavras.


Meu nome é flecha. E perde-se
no pássaro. Começa
meu canto onde começa
a construção. Pastores
do tempo são meus dedos.
Caçadores de coisas
impossíveis. Eu canto
os dedos que transformam
e se transformam. Canto
as marítimas mãos
de Magalhães. As mãos
voadoras de Gagárine.


Procurai-me no mar
procurai-me no espaço.
Estou no centro da terra.
Meu nome é cinza. E espalha-se
no vento. Sou adubo
fermentação floresta
e cintilo nas armas.


Canto as armas e o Tempo.
As minhas armas o
meu tempo. E desarmado
pergunto à flor pergunto
ao vento: vistes lá
o meu país? E o meu
país está nas palavras.
Porque a Tribo me disse:
tu guardarás o fogo.
E por armas me deu
esta espada este canto.





segunda-feira, 11 de maio de 2020

#305 - PRÓLOGO (José Pascoal)

Numa volta em bicicleta,
O prólogo é um contra-relógio
De curta distância,
Tão curta,
Tão breve, que o tempo
A separar o primeiro do último
Será sempre muito pequeno,
Salvo acidente,
Uma corrente partida,
Uma facada no peito,
Uma fractura no espírito,
Uma lenta amnésia retrógrada.



domingo, 10 de maio de 2020

#304 - POENTE (Francisco Costa)

Vai o sol declinando e já procura
refúgio na montanha -- ali, de fronte,
naquela curva que, de monte a monte,
faz um regaço cheio de verdura.

Seu fogo, que a neblina transfigura,
penetra em mim sem me queimar a fronte.
Cala-se o vento, fala baixo a fonte,
surge no céu uma estrelinha pura.

Dia após dia, ó sol, o teu poente,
rodando a oeste, vai ficar-me ausente,
até que o píncaro outra vez procures.

Em breve, no regresso a esta serra,
não acharás meus olhos sobre a terra.
Mas o meu canto estará vivo -- algures.


sábado, 9 de maio de 2020

#303 - O POETA (Papiniano Carlos)

Seara e nuvem, barco e melodia
no coração das feras e das aves,
trazes a aurora em tuas mãos suaves
abrindo a noite, barco e melodia.
Lírio solar, estrada e cotovia
jamais sonhada pelas próprias aves,
a morte e a vida, a porta e as chaves
tudo em ti se confunde e anuncia.

Sonharam-te os abismos, e os morcegos
volvem-se em arcanjos e vêm, cegos
quando os fitas, pousar na tua mão.

Só em ti a beleza encontra forma.

Cantas! e logo a noite se transforma
no dia que faltava à Criação.





sexta-feira, 8 de maio de 2020

#302 - "beba coca cola" (Décio Pignatari)

beba coca cola
babe          cola
beba cola
babe cola caco
caco
cola
             cloaca



quarta-feira, 6 de maio de 2020

#301 - ELEGIA DA DISTÂNCIA (Afonso de Castro)


A Teixeira de Pascoais


Rios de Trás-os-Montes, a rezar
A elegia dum sonho que morreu...
Sonâmbulas montanhas, onde o luar
É um anjo imenso errando pelo céu;

Melancólicos vales, onde o mar
Seu miserere trágico escondeu,
Onde, como um assombro, a cogitar,
Paira o vulto espectral de Prometeu;

Sou um fantasma errante do Marão,
Vestido de penumbra e solidão,
Que, em poeira de estrelas, se dilui...

Minha presença é feita de lembrança,
E ando, de noite, enfermo de esperança,
A interrogar a sombra do que fui.



#300 - BICHOS COM CAPRICHOS (Vergílio Alberto Vieira)

1


Asa leve,
Pena arisca,
Salta, breve,
A levandisca.


Campos fora,
A terra cisca.
Se demora,
Não lambisca.


Rumo ao sul,
O dia arrisca
Em céu azul,
A levandisca.




2


Rente ao chão,
Toca que toca,
Lá vai não
Vai a minhoca.


Para viver
Põe-se à coca:
Não há-de ser
Dorminhoca,


Pois muito tem
P'ra cavar
Quem se mantém
De luar.



terça-feira, 5 de maio de 2020

#299 - PLUS ULTRA (Alexandre de Córdova)

Ao Dr. José Miranda

Pelas solitárias quebradas dos montes
Erram indistintas vozes naturais.
Balidos de corças, murmúrios de fontes,
Perdidas cantigas d'amor dos zagais.

E mais para além dos vastos horizontes,
E inda p'ra além doutros horizontes mais,
Há sonhos desfeitos, pensativas frontes,
Loucos corações em pecados mortais.

Para além de nós e do que em nós existe
Há manhãs de sol, noites de luar triste,
Destinos perdidos em convulsões e ânsias.

Num só horizonte a vida não se cinge,
Pois outros mais há que a vida não atinge,
E muito p'ra além de todas as Distâncias.


#298 - MUITO OBRIGADO (Francisco Alvim)

Ao entrar na sala
cumprimentei-o com três palavras
boa tarde senhor
Sentei-me defronte dele
(como me pediu que fizesse)
Bonita vista
pena que nunca a aviste
Colhendo meu sangue: a agulha
enfiada na ponta do dedo
vai procurar a veia quase no sovaco
Discutir o assunto
fume do meu cigarro
deixa experimentar o seu
(Quanto ganhará este sujeito)
Blazer, roseta, o país voltando-lhe


no hábito do anel profissional
Afinal, meu velho, são trinta anos
hoje como ontem ao meio-dia
Uma cópia deste documento
que lhe confio em amizade
Sua experiência nos pode ser muito útil
não é incômodo algum
volte quando quiser



sábado, 2 de maio de 2020

#297 - TARDE (Amorim de Carvalho)

Tão tarde apareceste
na minha solidão!
Onde estiveste
quando esperei por ti?... Talvez não esperasse, talvez não!
Nunca te adivinhei. Por isso hoje não tenho um só amor
que me bendiga.
Sou como aquelas árvores sem flor,
que mal estendem os seus braços, desoladas,
aos caminhantes cheios de fadiga;
ou como aquelas árvores de sombra amiga,
mas que florescem longe das estradas.

Não me dês teu afecto. Bem sei
que não mereço, porque não te esperei.
Põe nos meus olhos teu olhar.
Não sentes medo?
Vou dizer-te -- um terrível segredo:
Não sei amar!
Eu sou como o estouvado jardineiro
que ao vento arremessou as sementes formosas
das violetas, dos lírios e das rosas,
e nunca foi capaz de florir um canteiro...
Sou como o dementado mercador, que, um dia,
abriu a sua loja,
e da porta chamando toda a gente que passa,
dos bens que possuía
se despoja,
dando tudo de graça...

Minha vida, meu sonho, minha alma -- tudo o que eu tinha, dei.
Gastei o coração, que eu supusera infindo,
no amor em que, baldadamente, a tantas outras eu amei...
E quem és tu que vens agora?... Já te reconheci:
és aquela que nunca deveria ter vindo,
pois já não tenho nada
para ti.

Deixa-me só no teu regaço repousar
minha fronte cansada,
para chorar...