domingo, 20 de dezembro de 2020

#350 - "malditos" (João Rebocho)

 malditos

esses gajos

condenados

sozinhos nos aeroportos

a bagagem

num tapete

no outro lado do mundo

cada um para ali

mais culpado

à beira das lágrimas

a mobília em pedaços

malas derramando

na Austrália

e nós aqui

a vida entre os dedos

perco de novo


família que não veio existir

essa gente que era tua

quem te amasse,

atrasados sempre


avião que caiu

sem ter caído,

sangue pisado

desertas as chegadas




segunda-feira, 2 de novembro de 2020

#349 - AS CIGARRAS (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Com o fogo do céu a calma cai

No muro branco as sombras são direitas

A luz persegue cada coisa até

Ao mais extremo limite do visível

Ouvem-se mais as cigarras do que o mar

domingo, 27 de setembro de 2020

#348 - MORS SANCTA (João Saraiva)

 Na humilde cela, onde em perfume casto

O luar esbate, merencório e brando,
Vai-lhe fugir o espírito, beijando
A negra cruz do seu rosário gasto...

Como num sonho tumular, nefasto,
Corvos que passam pela noite, em bando,
Trazem-lhe a morte lívida, cortando
O fundo azul silencioso e vasto...

Em prata líquida o luar escorre
Pelo fio das trémulas espadas
Que esgrime ao vento o canavial do rio...

E, quando, o brilho das estrelas morre,
O monge cerra as pálpebras molhadas,
Levando ao lábio o rosário frio...




quarta-feira, 23 de setembro de 2020

#347 - APÓSTROFO (Pedro Alvim)

Assim longos o dia fraccionavam pelas casas do Xadrez dois jogadores. Era pela tarde, quando o Sol oblíquo e fulvo se opõe já ao ponto primeiro do seu arco. Altas heras p'lo pátio desenhavam de sombra e luz cavalos diminutos -- e tão assim era, tão assim, tão, que logo as palavras saqueadas no salto morriam dos Cavalos. A caminho de Agosto abelhas raras doçura buscavam nos peões -- sílabas inseridas em minutos, outro era, porém, ali, o néctar; ora o Rei uma casa aventurando, ora o diagonal perfil dos Bispos, ora as Torres tomando posições, ora a branca Dama o véu do gesto de quem pela mão a deslocava ao longo do tabuleiro desdobrando... Assim tudo era -- e 'té a métrica no lapso das sombras e da luz um apóstrofo ao ritmo breve dava para que uma letra só não ferisse o medido gesto de quem longo ao longo das casas o finito no silêncio inseria do infinito. Ao longo do tabuleiro os jogadores assim pelas heras desenhados, como quem subtil desdobra rédeas e o instante sopesa do equilíbrio, apóstrofos colocavam nos Cavalos -- e a tarde, assim sustida, era e não era o galope disparado que habita o passo do dia demorado.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

#346 - AUSÊNCIA (Manuel da Silva Gaio)

Desde que, por não te ver,
Vejo em tudo... noite escura,
Resta-me só a ventura
De duvidar em dizer:

-- Qual mais custa: se a tristeza
Dum adeus amargurado,
Se a dura e firme certeza
De estar penando a teu lado.


domingo, 30 de agosto de 2020

#345 - A NOSSA SENHORA (Nicolau Tolentino)

Se a febre atraiçoada enfim declina,
E se se esconde a aberta sepultura,
Ao vosso rogo o devo, ó Virgem pura,
Por quem me quis livrar a Mão Divina:

Sem Vós debalde a experta medicina
Traça e aparelha a desejada cura;
Sem Vós o índio adusto em vão procura
A amarga casca da saudável quina.

Quando em luta co'a morte me contemplo,
Sem haver já no mundo quem me valha,
Do vosso grão poder, (que grande exemplo!)

Vencestes; e, em memória da batalha,
Penduro nas paredes deste templo,
Rasgando, um novo Lázaro, a mortalha.



terça-feira, 25 de agosto de 2020

#344 - DIÁRIO (Ana Salomé)

A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.


segunda-feira, 24 de agosto de 2020

#343 - FUMO (António Fogaça)

Do meu quarto, que dá sobre uns quintais,
Descubro todo o bairro; e, muita vez,
Vejo, evolar-se o fumo em espirais
                    Das negras chaminés.

Quando vou à janela, ao Sol poente,
Horas em Junho de acender os lares,
Meus olhos vão seguindo longamente
                    O fumo pelos ares.

E penso ver formarem-se na vasta
Imensidade, esplêndidas imagens;
Até que o fumo pelo Azul se gasta
                    Nas mais altas viagens.

Todo este quadro é tão banal, que então
Chego a rir-me de mim, do que resumo
Na minha eterna e doce aspiração...
                    Que se assemelha ao fumo.




domingo, 23 de agosto de 2020

#342 - PRAÇA DA REPÚBLICA DOS MEUS SONHOS (Roberto Piva)

A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem
     de morfina
a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando
     na Tarde de esterco
Praça da República dos meus Sonhos
     onde tudo se fez febre e pombas crucificadas
     onde beatificados vêm agitar as massas
     onde García Lorca espera seu dentista
     onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces
os meninos tiveram seus testículos espetados pela multidão
lábios coagulam sem estardalhaço
os mictórios tomam um lugar na luz
e os coqueiros se fixam onde o vento desarruma os cabelos

Delirum Tremens diante do Paraíso bundas glabras sexos de papel
     anjos deitados nos canteiros cobertos de cal água fumegante nas
     privadas cérebros sulcados de acenos
os veterinários passam lentos lendo Dom Casmurro
há jovens pederastas embebidos em lilás
e putas com a noite passeando em torno de suas unhas
há uma gota de chuva na cabeleira abandonada
enquanto o sangue faz naufragar as corolas
Oh minhas visões lembranças de Rimbaud praça da República dos meus
     Sonhos última sabedoria debruçada numa porta santa


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

#341 - GRUPO ESCOLAR (Antonio Carlos de Brito / Cacaso)

Sonhei com um general de ombros largos que fedia
e que no sonho me apontava a poesia
enquanto um pássaro pensava suas penas
e já sem resistência resistia.
O general acordou e eu que sonhava
face a face deslizei à dura via
vi seus olhos que tremia, ombros largos,
vi seu queixo modelado a esquadria
vi que o tempo galopando evaporava
(deu pra ver qual a sua dinastia)
mas em tempo fixei no firmamento
esta imagem que rebenta em ponta fria:
poesia, esta química perversa,
este arco que desvela e me repõe
nestes tempos de alquimia.


segunda-feira, 10 de agosto de 2020

#340 - A ANDORINHA OU TUDO É RELATIVO (A. M. Pires Cabral)

Da andorinha dificilmente se dirá
que é um animal feroz. Pelo contrário,
convêm-lhe adjectivos como grácil.

Mas a grácil andorinha abre
para o mosquito uma boca aterradora.



domingo, 9 de agosto de 2020

#339 - SÚPLICA (Queirós Ribeiro)

Peguei nos sonhos
E fui atando...
Juntei! Juntei!
O aroma é brando...
Tristes? Risonhos?
Tudo! Nem sei!

Sonhos que eu amo
E em que me extingo...
Nevadas flores!
Não vos distingo...
Só vejo um ramo...
Confundo as cores!

Mas tu, que levas
O ramo ao lado,
Sem o pensar,
Queda um bocado!
-- Sacia as trevas
Ao meu olhar!

Dá-lhe um sorriso!
Depois, sem pranto,
Deixa-me só...
Lírio de encanto,
Que nem diviso
-- Porque sou pó.




quinta-feira, 6 de agosto de 2020

#338 - PESQUISA UTILITÁRIA (Carlos Saldanha / Zuca Sardan)

De cem favoritos reais
noventa e seis foram guilhotinados.
É preciso conversar atentamente
com os quatro que sobraram...


sexta-feira, 31 de julho de 2020

#337 - POÉTICA 2 MIL (Rodrigo Tomé)

Não quero falar de coisas amenas
     cantar a vida com voz humilde e abafada
     que mesmo quando grita de dor
     grita de forma suave quase calada
não quero fazer par com meus contemporâneos
     coaxar de sapos à luz neo-neo-neo-parnasiana
     coisas amenas cantilenas
     são sempre as mesmas
     contemplam as palavras e os poetas como se fossem deuses
     como se fossem a nossa própria realidade
humildade que me dá asco e cansaço
                    quero empurrar a porta aos trambolhões
                    romper a madrugada molhada
                    o hímen do porvir é sempre mais doce
vanguarda vanguarda vanguarda sou seu porta-estandarte
          não sinto medo de ser mais do que poderei ser
            meu desejo me precede
coisas amenas flores no estrume seco
  coisas amenas coisas pequenas
  que de tão pequenas se diluem em mim
o retorno da bossa-nova em rosto jovens
e envelhecidos pela inércia
  endeusaram chico
      endeusaram caetano
          endeusaram jobim
               pau
          pedra
     fim do caminho
          resto de toco
              um cu
                       sozinho



terça-feira, 28 de julho de 2020

#336 - "Ai árvores ali" (António Pedro)

Ai árvores ali
e duras!,... ai!:
e aqui
terra queimada
só.


Bé!,
o pó
da ventania
sufoca!
...Lá na baía
ou doca
ou o que é,
lá do vapor
parecia
melhor,
embora fosse careca
a terra seca,
e o sol queimasse
e adormentasse
já.



há mais do que calor,
há dor
do sol!


...e a preta
de lenço branco
lá no barranco
da achada
tem o ar de um sobressalto


...E andam sombras
pelas sombras
como havia no mar alto…


No entanto,
de não estar
habituado a encontrar
estas sombras aqui,
ainda não consegui
o meu encanto:
pasmar


-- Paisagem, quem me adivinha? --


E andam sombras pelas sombras
enquanto a noite caminha,
dês que o luar dealbou…


Que tentaram ensombrar-me…
-- Mas quem foi que me assombrou?


Quem me ensombra
não me assombra!
...Apenas me sobressalta
não ver os mortos da sombra
que me fazem tanta falta!...



sexta-feira, 24 de julho de 2020

#335 - SONETO MENOR À CHEGADA DO VERÃO (Eugénio de Andrade)

Eis como o verão
chega de súbito,
com seus potros fulvos,
seus dentes miúdos,


seus múltiplos, longos
corredores de cal,
as paredes nuas,
a luz de metal,


seu dardo mais puro
cravado na terra,
cobras que despertam
no silêncio duro…


Eis como o verão
entra no poema.



quarta-feira, 22 de julho de 2020

#334 - DIA 1 (Pedro Alvim)

Hoje não há leite.
O alumínio
não foi 
à flor do lume.

Que silêncio
quadrado
na cozinha!
Lá fora

-- um frio só
de rua fria.
Que risco

tão um
o número 
deste dia!


domingo, 19 de julho de 2020

#333 - A ORIENTE DE MIM (Adalberto Alves)

A oriente de mim
há uma estrada
por onde vim
trazido a esta parte.
Foi construída com arte
e desemboca no Nada.

Março, 1987


quinta-feira, 16 de julho de 2020

#332 - MAR DE SETEMBRO (Eugénio de Andrade)

Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves -- só
alma e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto,
puríssimo, doirado.





segunda-feira, 13 de julho de 2020

#331 - SANTO E SENHA (Miguel Torga)

Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.

Deixem, que vai apenas
Beber água de Sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão.



quarta-feira, 8 de julho de 2020

#330 - INTRODUÇÃO AO CANTO (Eugénio de Andrade)

Ergue-te de mim,
pura chama do meu canto.
Luz terrestre, fragrância.
Ergue-te, jasmim!


Ergue-te, e aquece
a cal e a pedra,
as mãos e a alma.
Inunda, reina, e amanhece.


Ao menos tu sê ave,
primavera excessiva!
Ergue-te de mim:
canta, delira, arde!



segunda-feira, 6 de julho de 2020

#329 - CIFRA (Miguel Torga)

A imagem é o clarão
Emprestado à negrura.
Serve passivamente
A noite que ilumina.
Raio que não fulmina
A vida que atravessa,
A sua luz termina
Onde outra luz começa…


domingo, 5 de julho de 2020

#328 - ANACREÔNTICA (António Feijó)

Teu rosto é como
Um róseo pomo,
Que eu só desejo
Morder num beijo.

Último tomo
De amor que eu domo
Enquanto almejo
O grato ensejo...

O afecto que
Me enchera de
Paixão fatal

Vê com ardor
Teu belo cor-
po escultural!


quinta-feira, 2 de julho de 2020

#327 - CORAÇÃO HABITADO (Eugénio de Andrade)

Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.


Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.


Alguns pensam que são as mãos de Deus
-- eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.


Não lhe toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva!
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.



terça-feira, 30 de junho de 2020

#326 - "Gregor transformou-se em barata gigante." (António Franco Alexandre)

Gregor transformou-se em barata gigante.
Eu não: fiz-me aranhiço,
tão leve que uma leve brisa o faz
oscilar no seu fio de baba lisa.
Até que, contra a lei da natureza,
creio que tenho peso negativo,
e me elevo no ar se me não prendo
ao canto mais escuro desta ilha.
Quando descer à teia derradeira
não se verá no mundo alteração, ou só
talvez alguma mosca mais contente.
Em noites de luar, na alta esquina,
ficará a brilhar, mas sem ser vista,
a estrela que tracei como armadilha.



quinta-feira, 25 de junho de 2020

#325 - LETREIRO (Miguel Torga)

Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim -- meu principal motivo
De insatisfação --,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não sei me conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.



terça-feira, 23 de junho de 2020

#324 - SONETO (Camilo Pessanha)

Esvelta surge! Vem das águas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexíveis e o seio fremente...
Morre-me a boca por beijar a tua.

Sem vil pudor! Do que há que ter vergonha?
Eis-me formoso, moço e casto, forte.
Tão branco o peito! -- para o expor à Morte...
Mas que ora -- a infame! -- não se te anteponha.

A hidra torpe!... Que a estrangulo... Esmago-a
De encontro à rocha onde a cabeça te há-de,
Com os cabelos escorrendo água,

Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.



sábado, 20 de junho de 2020

#323 - PRIMEIRAMENTE (Eugénio de Andrade)

Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus.

E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, com a solidão aberta nos dedos como um cravo.

Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca -- e sempre a tua boca! -- comece de novo a nascer na minha boca.

Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a minha face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu...


quarta-feira, 17 de junho de 2020

#322 - MORTE: SUAS CONTAS DE DIVIDIR (Alexandre Pinheiro Torres)

O horizonte divide-nos nas suas mentiras:
ou é uma árvore ou um rio e todos os anzóis que engoliu
ou uma mandíbula de peixe ou o sol: o velho incendiário ambulante.
A morte essa é um maravilhoso número indivisível.



segunda-feira, 15 de junho de 2020

#321 - "Deixamos passar os prazos de entrega" (Rui Almeida)

Deixamos passar os prazos de entrega
Sem que nos peçam contas. Somos nada
Mais do que tarefeiros postos à
Porta da repartição a ver quem


Entra tomado do assombro fácil
Indispensável aos pobres coitados
Como nós. Já não vamos a tempo
De desatar as sandálias ao mestre


Momentâneo. O nosso lugar
Está vago, somos de outro jeito,
De outro tom de voz. Amanhã
Já não haverá quem se lembre.





terça-feira, 9 de junho de 2020

#320 - "Julgam-me mui sabedor;" (António Aleixo)

Julgam-me mui sabedor;
e é tão grande o meu saber
que desconheço o valor
das quadras que sei fazer!



sábado, 6 de junho de 2020

#319 - DISSOLUÇÃO (Carlos Drummond de Andrade)

Escurece, e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite.

E com ela aceito que brote
uma ordem outra de seres
e coisas não figuradas.
Braços cruzados.

Vazio de quanto amávamos,
mais vasto é o céu. Povoações
surgem do vácuo.
Habito alguma?

E nem destaco minha pele
da confluente escuridão.
Um fim unânime concentra-se
e pousa no ar. Hesitando.

E aquele agressivo espírito
que o dia carreia consigo,
já não oprime. Assim a paz,
destroçada.

Vai durar mil anos, ou
extinguir-se na cor do galo?
Esta rosa é definitiva,
ainda que pobre.

Imaginação, falsa demente,
já te desprezo. E tu, palavra.
No mundo, perene trânsito,
calamo-nos.
E sem alma, corpo, és suave.


quarta-feira, 3 de junho de 2020

#318 - FLORESTA CONVULSA (Alberto de Oliveira)

Floresta de altas árvores, escuta:
Em minha dor vim conversar contigo,
Como no seio do melhor amigo,
Descanso aqui de tormentosa luta.


Troncos da solidão intacta e bruta,
Sabei… Ah! que, porém, como um castigo
Vos estorceis, e o som do que vos digo
Vai morrer longe em solitária gruta.


Que tendes, vegetais?... remorso?... crime?...
Açoita-vos o vento, como um bando
De fúrias e anjos maus, que nós não vemos?


Mas explicai-vos ou primeiro ouvi-me,
Que a um tempo assim braceando, assim gritando,
Assim chorando não nos entendemos.



segunda-feira, 1 de junho de 2020

#317 - MERIDIONAL (Cesário Verde)

CABELOS


Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;

Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.

Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.

Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!

E ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de teres cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;

Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.

Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,
E vais na direcção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e enlanguescer.

E a tua cabeleira, errante pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de Verão,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.

E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.

............................................................................
............................................................................

Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.




quarta-feira, 27 de maio de 2020

#316 - O SAPO (Afonso Lopes Vieira)

Não há jardineiro assim,
não há hortelão melhor
para uma horta ou jardim,
para os tratar com amor.


É o guarda das flores belas,
da horta mais do pomar;
e enquanto brilham estrelas,
lá anda ele a rondar…


Que faz ele? Anda a caçar
os bichos destruidores
que adoecem o pomar
e fazem triste as flores.


Por isso, ficam zangadas
as flores, se se faz mal
a quem as traz tão guardadas
com seu cuidado leal.


E ele guarda as flores belas,
a horta mais o pomar;
brilham no céu as estrelas,
e ele ronda, a trabalhar…


E ao pobre sapo, que é cheio
de amor pela terra amiga,
dizem-lhe muitos que é feio
e há quem o mate e persiga!


Mas as flores ficam zangadas,
choram, e dizem por fim:
-- «Então ele traz-nos guardadas,
e depois pagam-lhe assim?»


E vendo, à noite, passar
o sapo cheio de medo,
as flores, para o consolar,
chamam-lhe lindo, em segredo…












(Raul Lino)

segunda-feira, 25 de maio de 2020

#315 - FOZ DO ARELHO ou PRIMEIRO POEMA DO PESCADOR (Manuel Alegre)

Este é apenas um pequeno lugar do mundo
um pequeno lugar onde à noite cintilam luzes
são os barcos que deitam redes junto à costa
ou talvez os pescadores de robalos com suas lanternas
suas pontas de cigarro e suas amostras fluorescentes
talvez o Farol de Peniche com seu código de sinais
ou a estrela cadente que deixa um rastro
e nada mais.

Um pequeno lugar onde Camilo Pessanha voltava sempre
talvez pelo sol e as espadas frias
talvez pelas orquestras e os vendavais
ou apenas os restos sobre a praia
«pedrinhas conchas pedacinhos d'osso»
e nada mais.

Um pequeno lugar onde se pode ouvir a música
o vento o mar as conjunções astrais
um pequeno lugar do mundo
onde à noite se sabe
que tudo é como as luzes que cintilam
um breve instante
e nada mais.

Foz do Arelho, 8.8.96


domingo, 24 de maio de 2020

#314 - ONDA VAI ONDA VEM (Antero Abreu)

Forma-se a onda e depois outra e outra
E enquanto se desfazem outras vêm
O mar é sempre o mesmo e no entanto
Em onda se divide
E nelas se une.

O mar somos nós todos
O mundo
Em água condensado.

Onda vai onda vem
A fina areia e o mar vai revolvendo.

Desponta ao longe uma restinga.

17/10/977


sábado, 23 de maio de 2020

#313 - O BAILADOR DE FANDANGO (Pedro Homem de Melo)

Sua canção fora a Gota.
Sua dança fora o vira.
Chamavam-lhe: «o fandangueiro».
Mas o seu nome verdadeiro
Quando bailava, bailava,
Não era nome de cravo,
Nem era nome de rosa.
-- Era o de flor, misteriosa,
Que se esfolhava, esfolhava...
E havia um cristal na vista
E havia um cristal no ar
Quando aquele fandanguista
Se demorava a bailar!
E havia um cristal no vento
E havia um cristal no mar!
E havia no pensamento
Uma flor por esfolhar...
Fandangueiro! Fandangueiro!
(Nem sei que nome lhe dar...)
Tinham seus braços erguidos
Nem sei que ignotos sentidos...
-- Jeitos de asa pelo ar...
Quando bailava, bailava,
Não era folha de cravo
Nem era folha de rosa.
Era uma flor, misteriosa,
Quando se esfolhava, esfolhava...



quinta-feira, 21 de maio de 2020

#312 - ARTE POÉTICA (Vergílio Alberto Vieira)

Nenhum brilho (como esse que a luz recorta a frio,
e incendeia a cor) sempre foi ouro de apagadas luas.
Esta agulha de pedra, que o astro equilibra a prumo
sobre a mão, de fogo cósmico estremece.
O unicórnio branco o sabe, e eu.



terça-feira, 19 de maio de 2020

#311 - DESCENDÊNCIA (Eucanaã Ferraz)

Compreendo que o homem tenha coroado
morta a rainha que lhe mataram.
Era preciso sempre coroá-la.


Julgo razoável a vingança esmerando-se
à perfeita aberração do amor além da morte
e coroá-lo.


Entendo o gosto do amante
ao ver arrancados os corações dos que lhe mataram
a amada. Penso que foi justo e nobre.


Beijei com gosto a mão fria.
Nossos amores assassinados
devíamos todos coroar em rainha.



segunda-feira, 18 de maio de 2020

#310 - DO POETA AO SEU POVO (Manuel Alegre)

Darei ao povo o meu poema.
Eu lhe darei a flor e a pedra
cada minuto cada tristeza
e uma azagaia contra a dura sorte
e a minha raiva acesa em cada noite. Eu lhe darei
a flor e a pedra. E a minha vida. E a minha morte.


E o direito do povo me julgar
e o direito do povo me dizer:
tu dormiste de mais. Cantaste pouco amigo.
Há muita coisa que não sabes
E eu lhe darei meu sono e eu lhe darei meu sonho.
E eu dou ao povo tudo quanto sei.


E nunca sei se tudo quanto dou é tudo.
Porque parei por vezes à beira dum poço
havia raparigas e cântaros e seios
e então bebi. Era Setembro e não pensei
que os homens não cantavam lá nas verdes vinhas
da minha pátria onde a vindima é triste.


Porque dormi de mais algumas vezes.
Outras ainda presumi e disse:
vou acordar o povo. Eu sou o poeta.
E não bati a cada porta e não deixei
em cada casa a taça da canção.
Porque não disse ao povo: sou apenas um homem.


Porque menti e dei aos outros
uma alegria feira à pressa       uma alegria triste.
Porque não disse os meus defeitos e nem sempre
eu disse ao povo duramente os meus defeitos
que também estão em mim. Porque me orgulho tanto
dos defeitos em mim do povo que não tem os meus.


Porque não disse ao povo: sou apenas um homem
talvez não preste é certo mas é tudo.
E nem sempre fiz tudo para ser mais do que sou.
Porque lhe disse: eis o poema eis o meu sangue.
E pensei que era tanto e pensei que era tudo
quando é tão pouco o sangue dum poeta.



sábado, 16 de maio de 2020

#309 - LIMIAR (João de Barros)

Àqueles que sabem
e querem amar o
Futuro:

Foge o Presente, foge às mãos sequiosas
De cingi-lo, apertá-lo ao coração,
E as horas correm, tão vertiginosas,
Que mal as vemos, no seu turbilhão...

Umas dão sonho, noutras nascem rosas.
Sonhos e rosas -- porque nascerão?...
-- Como a volúpia incerta que tu gozas
Deixam saudades só, meu coração!

E é sempre esta saudade, esta agonia
De não viver a vida fugidia,
De ver fugir desejo, amor, verdade...

-- Mas o Futuro vela... E, fielmente,
Colhe as horas mais belas do Presente
E delas tece a nossa eternidade!




quinta-feira, 14 de maio de 2020

#308 - RECADO (QUASE PROSAICO) AO QUE CHEGOU DE CEUTA A MANQUEJAR DUM OLHO (Vergílio Alberto Vieira)

     Tão logo os bronzes do império (que, em nos enriquecendo, mais pobre nos tornaram) aquém dos continentes emudeceram na razão, e outra é já a nossa indústria, camarada.
     Não que outro seja o rude tímpano de outrora, não que outra seja a gente surda:
     O verbo a mesma lira destempera.
     E cansa a mesma pátria: metida / No gosto da cobiça e na rudeza / De uma austera, apagada e vil tristeza*.
     Destarte, olha que, poragora, de baldias esperanças ainda nos mantemos!
     Os que ao reino tanta riqueza tiraram p'ra seu uso, do teu saber outro saber fizeram; e das artes, ousado bem com que, ante o favor da musa, nos cantaste, o coração e a alma ratearam.
     Porisso, mais enfastia o que sobeja!*
     Muito cumprimos por preço bem mesquinho, nós que, pelas armas, ainda há pouco, em áfricas buscados, errávamos de nosso fundamento.
     O que da espada é brilho em nada nos protege.
     O que pela pena é ouro desta idade, em pouco ou nada, do culto nos corrige.
     Mas por quanto erros adoece a pátria tua amada, há-de este povo porfiar um dia desperto para a luz de um bem regido e sábio entendimento.

 











* Luís de Camões
e Sá de Miranda 

quarta-feira, 13 de maio de 2020

#307 - BUSCANDO A CRISTO (Gregório de Matos)

A vós correndo vou, braços sagrados,
nessa Cruz sacrossanta descobertos
que, para receber-me, estais abertos,
e, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados
de tanto sangue e lágrimas cobertos,
pois, para perdoar-me, estais despertos,
e, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,
a vós, sangue vertido, para ungir-me,
a vós, cabeça baixa, por chamar-me.

A vós, lado patente, quero unir-me,
a vós, cravos preciosos, quero atar-me,
para ficar unido, atado e firme.


terça-feira, 12 de maio de 2020

#306 - O CANTO E AS ARMAS (Manuel Alegre)

Canto as armas e os homens
as pedras e os metais
e as mãos que transformando
se transformam. Eu canto
o remo e a foice. Os símbolos.
Canto o martelo e a pena.
Meu sangue é uma guitarra
tangida pelo Tempo.


Canto as armas e as mãos.
E as palavras que foram
areias tempestades
minutos. E o amor.
E também a memória
do cravo e da canela.
E também a quentura
doutras mãos: terras e astros.
E também a tristeza
e a festa. O sangue e as lágrimas.
O vinho: puro arder.
E também a viagem:
navegação lavoura
indústria -- esse combate.
Procurai-me nas armas
no sílex no barro.
Pedra: meu nome é esse.
E escreve-se no vento.


Canto o carvão e as cinzas
as gazelas e os peixes
na fogueira contínua
das cavernas. E a pele
do tigre sobre a pele
do homem. Eis o meu rosto:
está gravado na rocha.
Procurai-me no fóssil
e no carvão. Meu rosto
é cinza e primavera.


Canto as armas e os homens,
Porque a Tribo me disse:
tu guardarás o fogo.
E por armas me deu
o bronze das palavras.


Meu nome é flecha. E perde-se
no pássaro. Começa
meu canto onde começa
a construção. Pastores
do tempo são meus dedos.
Caçadores de coisas
impossíveis. Eu canto
os dedos que transformam
e se transformam. Canto
as marítimas mãos
de Magalhães. As mãos
voadoras de Gagárine.


Procurai-me no mar
procurai-me no espaço.
Estou no centro da terra.
Meu nome é cinza. E espalha-se
no vento. Sou adubo
fermentação floresta
e cintilo nas armas.


Canto as armas e o Tempo.
As minhas armas o
meu tempo. E desarmado
pergunto à flor pergunto
ao vento: vistes lá
o meu país? E o meu
país está nas palavras.
Porque a Tribo me disse:
tu guardarás o fogo.
E por armas me deu
esta espada este canto.





segunda-feira, 11 de maio de 2020

#305 - PRÓLOGO (José Pascoal)

Numa volta em bicicleta,
O prólogo é um contra-relógio
De curta distância,
Tão curta,
Tão breve, que o tempo
A separar o primeiro do último
Será sempre muito pequeno,
Salvo acidente,
Uma corrente partida,
Uma facada no peito,
Uma fractura no espírito,
Uma lenta amnésia retrógrada.



domingo, 10 de maio de 2020

#304 - POENTE (Francisco Costa)

Vai o sol declinando e já procura
refúgio na montanha -- ali, de fronte,
naquela curva que, de monte a monte,
faz um regaço cheio de verdura.

Seu fogo, que a neblina transfigura,
penetra em mim sem me queimar a fronte.
Cala-se o vento, fala baixo a fonte,
surge no céu uma estrelinha pura.

Dia após dia, ó sol, o teu poente,
rodando a oeste, vai ficar-me ausente,
até que o píncaro outra vez procures.

Em breve, no regresso a esta serra,
não acharás meus olhos sobre a terra.
Mas o meu canto estará vivo -- algures.


sábado, 9 de maio de 2020

#303 - O POETA (Papiniano Carlos)

Seara e nuvem, barco e melodia
no coração das feras e das aves,
trazes a aurora em tuas mãos suaves
abrindo a noite, barco e melodia.
Lírio solar, estrada e cotovia
jamais sonhada pelas próprias aves,
a morte e a vida, a porta e as chaves
tudo em ti se confunde e anuncia.

Sonharam-te os abismos, e os morcegos
volvem-se em arcanjos e vêm, cegos
quando os fitas, pousar na tua mão.

Só em ti a beleza encontra forma.

Cantas! e logo a noite se transforma
no dia que faltava à Criação.





sexta-feira, 8 de maio de 2020

#302 - "beba coca cola" (Décio Pignatari)

beba coca cola
babe          cola
beba cola
babe cola caco
caco
cola
             cloaca



quarta-feira, 6 de maio de 2020

#301 - ELEGIA DA DISTÂNCIA (Afonso de Castro)


A Teixeira de Pascoais


Rios de Trás-os-Montes, a rezar
A elegia dum sonho que morreu...
Sonâmbulas montanhas, onde o luar
É um anjo imenso errando pelo céu;

Melancólicos vales, onde o mar
Seu miserere trágico escondeu,
Onde, como um assombro, a cogitar,
Paira o vulto espectral de Prometeu;

Sou um fantasma errante do Marão,
Vestido de penumbra e solidão,
Que, em poeira de estrelas, se dilui...

Minha presença é feita de lembrança,
E ando, de noite, enfermo de esperança,
A interrogar a sombra do que fui.