domingo, 27 de setembro de 2020

#348 - MORS SANCTA (João Saraiva)

 Na humilde cela, onde em perfume casto

O luar esbate, merencório e brando,
Vai-lhe fugir o espírito, beijando
A negra cruz do seu rosário gasto...

Como num sonho tumular, nefasto,
Corvos que passam pela noite, em bando,
Trazem-lhe a morte lívida, cortando
O fundo azul silencioso e vasto...

Em prata líquida o luar escorre
Pelo fio das trémulas espadas
Que esgrime ao vento o canavial do rio...

E, quando, o brilho das estrelas morre,
O monge cerra as pálpebras molhadas,
Levando ao lábio o rosário frio...




quarta-feira, 23 de setembro de 2020

#347 - APÓSTROFO (Pedro Alvim)

Assim longos o dia fraccionavam pelas casas do Xadrez dois jogadores. Era pela tarde, quando o Sol oblíquo e fulvo se opõe já ao ponto primeiro do seu arco. Altas heras p'lo pátio desenhavam de sombra e luz cavalos diminutos -- e tão assim era, tão assim, tão, que logo as palavras saqueadas no salto morriam dos Cavalos. A caminho de Agosto abelhas raras doçura buscavam nos peões -- sílabas inseridas em minutos, outro era, porém, ali, o néctar; ora o Rei uma casa aventurando, ora o diagonal perfil dos Bispos, ora as Torres tomando posições, ora a branca Dama o véu do gesto de quem pela mão a deslocava ao longo do tabuleiro desdobrando... Assim tudo era -- e 'té a métrica no lapso das sombras e da luz um apóstrofo ao ritmo breve dava para que uma letra só não ferisse o medido gesto de quem longo ao longo das casas o finito no silêncio inseria do infinito. Ao longo do tabuleiro os jogadores assim pelas heras desenhados, como quem subtil desdobra rédeas e o instante sopesa do equilíbrio, apóstrofos colocavam nos Cavalos -- e a tarde, assim sustida, era e não era o galope disparado que habita o passo do dia demorado.